A pequena Gaio-azul escondia bolotas de carvalho para comer posteriormente e, quando voltava ao local e via que elas haviam florescido em majestosos carvalhos, ficava frustrada pelas bolotas que foram perdidas. Mas esse era o ciclo inevitável da natureza, e os ramos desses carvalhos mais tarde abrigariam outros pássaros.
A Gaio-azul detestava todos os outros pássaros, e, embora soubesse cantar com a delicadeza digna de uma flauta, optava por emitir ruídos desagradáveis para repelir os que tentassem se aproximar.
Acontece que o carvalho é uma árvore receptiva, a ponto de ser o parâmetro para a análise de catástrofes naturais, pois ele absorve tudo. E grande parte dos carvalhos é semeada, ainda que involuntariamente, pela espécie da Gaio-azul. A cruel antítese perfeita. Lado A e lado B.
Quanto mais intempéries o carvalho enfrenta, não só mais forte fica, como também mais suas raízes se fincam e aprofundam no solo. Tão ao contrário daquela Gaio-azul, que alça voo, e foge.
Eles nunca poderiam ter se encontrado. Ele precisava de raízes; ela, desgarrada. Mas quis o destino que aquela exata bolota escondida se tornasse o exato carvalho no qual fora ele se refugiar.
Aquele não era seu habitat; mas, fugindo do viveiro em que o prenderam em cativeiro, vítima de um contrabando, algo tão comum à sua espécie, ali pousou o Tiê-sangue, uma ave acostumada a climas temperados, bem diferentes do que encontrou nos ramos daquele carvalho, um regalo involuntário da Gaio-azul, que, fazendo jus à sua genealogia corvídea, ainda que adaptável, era agressiva por opção.
– Você está invadindo a minha casa, e eu não quero que isso aconteça – disse a Gaio-azul ao notar a imagem vermelha nos ramos do seu carvalho.
– Não sei como vim parar aqui, eu não me lembro. Só quero voltar para minha casa.
– Não lembra nem onde é sua casa? Você não pode ficar aqui.
– Preciso achar o homem que me trouxe, e me colocou no viveiro, talvez ele saiba.
– Como ele é e onde está?
– Não sei ao certo, mas vim daquela direção. – O Tiê-sangue indicou com a cabeça, e isso o lembrou do que causara seu esquecimento. Na fuga, além de prender suas asas nas grades, ele bateu com a cabeça.
– Ótimo, não temos um nome, não temos um rosto… – A Gaio-azul só queria que aquele estranho fosse embora de sua casa, e seria prestativa o bastante para tirá-lo dali, mas ele não a estava ajudando.
– Podemos voar naquela direção e procurá-lo? – ele arriscou, ainda que ela parecesse desconcertada com sua presença.
– Tudo bem, vamos tentar. – Ela não achava que poderiam achar o tal homem daquela maneira, mas não havia outra opção, e alçou voo. Reparou que o Tiê-sangue não se moveu.
– Eu não consigo mais. Estou aqui há muito tempo e a dor aumentou.
– O que fizeram contigo?
– Machuquei minhas asas fugindo da gaiola, ficaram presas.
– Vem comigo, posso te carregar nas minhas asas.
O Tiê-sangue subiu nas asas da Gaio-azul, e segurou firme, sentindo o vento em suas penas. Ela voava de um jeito indomável, e, às vezes, isso o assustava.
– Você sabe me indicar o caminho?
– Estou um pouco tonto, mas consigo.
O Tiê-sangue lhe deu direção, e a Gaio-azul refez o percurso pelo qual, conforme se lembrava, ele chegara aos ramos de seu carvalho.
Eles encontraram o viveiro, e a Gaio-azul, pela primeira vez em sua curta existência, teve medo.
– É aqui. Precisamos entrar para achá-lo.
– E se nos pegarem e não conseguirmos mais sair?
– Mas é a minha única chance de descobrir onde moro e voltar para casa.
A Gaio-azul ficou dividida. Se não fosse sagaz o suficiente, eles seriam facilmente pegos. Mas ela não podia abandoná-lo com as asas machucadas. Tampouco ele poderia ficar nos ramos de seu carvalho.
– Feche os ouvidos – disse a ele. Entoou o seu pior canto, para desestabilizar os pássaros no viveiro e ocupar toda a atenção dos tratadores, e rapidamente entrou e se escondeu com ele. Aquele Tiê-sangue era um invasor, chegando sem aviso e sem licença, mas ela passou a sentir uma necessidade de protegê-lo. Isso era um tipo de raiz, então?
– Você consegue reconhecer algum desses homens?
– Não, ainda não.
O Tiê-sangue olhou minuciosamente, mas não achava o tal homem de que se lembrava, o que viu ao fugir da gaiola. Mas a Gaio-azul achou um vestígio. Um poleiro vazio, ao fundo do viveiro, que ainda estava com uma pequena etiqueta de identificação pendurada. Nela se lia Tiê-sangue, e havia uma numeração.
– Era você? Consegue se lembrar? – Ela voou dessa vez devagar, para que ele pudesse reparar os detalhes. Em volta, o vazio; eram somente os dois agora.
– Sim, eu me lembro. Foi daqui que eu fugi.
A Gaio-azul sentiu o Tiê-sangue se encolher e esconder em suas asas. E, embora se preocupasse com o que gerara aquela reação, isso era bom.
– O que foi?
– É ele. – Ela viu o homem ao longe.
– Aquele?
– Sim, ele me trouxe para esse lugar.
– Não acho seguro falarmos com ele. Ele vai nos prender.
– Se eu não tentar, nunca vou saber.
– Mas o preço a pagar é ficarmos presos. Talvez para sempre.
– Você não precisa se arriscar por mim. Obrigado por ter me trazido, você pode voltar.
E o Tiê-sangue percebeu o azul, antes tão vívido e intenso, das penas da Gaio-azul se diluir até um tom branco e turvo.
– O que está havendo com suas penas?
– Eu não sei.
Acontece que a coloração das penas da Gaio-azul vem da refração da luz, um indicativo de que a perspectiva constrói realidades, e a luz, de maneira improvável e inesperada, esmoreceu para ela. Talvez a arredia Gaio-azul começara a aceitar aquele intruso. Talvez ela.
– Não vou te deixar sozinho aqui.
E de repente a Gaio-azul se deu conta de que não estava ali para ajudá-lo a voltar, mas por sua companhia.
O tratador os viu, e a Gaio-azul se refugiou atrás de um comedouro, indicando ao Tiê-sangue que ficaria ali esperando que ele falasse com o tal homem.
O Tiê-sangue vacilou. Gostara da segurança das asas indômitas da Gaio-azul, mas seu passado estava pendente, e isso fazia parte de quem ele era, e não havia outra maneira de desfazer aquele borrão em sua história, que o incomodava mais do que suas asas feridas.
O tratador não o cumprimentou, e todas as suas palavras foram em vão. Ele sequer atentou que segurava o Tiê-sangue pelas asas machucadas, intensificando a dor. O tratador falou algo ininteligível com outras pessoas ao redor, o levou até uma gaiola distante dali, e o colocaram em um carro.
Agora ele não só não sabia quem era, como também para onde seria levado, tampouco se a Gaio-azul conseguiria novamente encontrá-lo, ou se a veria de novo. Também ela seria pega?
Estava arrependido. Seu passado ou sua antiga casa já não importavam mais, e ele se viu sentindo falta dos ramos daquele carvalho da Gaio-azul. A falta que ele sentia era, na verdade, da companhia da Gaio-azul.
Lembrou-se do canto dela, e de como sabia usá-lo para afastar os outros. Talvez, se pudesse imitá-lo, ela o encontraria de novo? Ela entenderia aquilo como um código dos dois?
Reuniu seu timbre mais duro, pensando nas penas da Gaio-azul perdendo a cor, e cantou. Seu canto saiu tão áspero que o motorista do veículo se assustou, e fez uma parada tão brusca que a porta da gaiola se desprendeu.
Suas asas doíam ainda mais, e ele sabia que não conseguiria voar. O máximo que pôde fazer, então, foi se atirar ao asfalto. Mas, antes que tocasse o solo, algo familiar aparou sua queda. Eram as asas da Gaio-azul.
– Você nunca sente medo, Gaio-azul?
– Eu sinto medo o tempo todo.
– Você não teve medo de vir atrás de mim e também ser capturada.
– Tive. Eu tive. Mas eu precisava saber se você realmente queria ir embora.
– Não. Eu quero ficar. A nossa casa não precisa estar enraizada. Só temos que pousar e ficar na casa que quisermos, mas essa casa não precisa ser como o carvalho. O carvalho não se entrega às intempéries, mas resiste se agarrando à terra. Você me fez ver que essa não é a única forma de resistir. Não precisamos ficar estáticos. Voar também não é uma forma de suportar?
– Quero cuidar das suas asas para que você possa voar, e nada consiga te prender ou impedir, Tiê-sangue.
– Já que pássaros somos, voemos juntos, Gaio-azul.

Todos os videntes têm razão (Livro 1), Prólogo.
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