O bloco de notas estava aberto naquela mensagem de aniversário. Na verdade, a única coisa que eu tinha escrito era o desfecho: “É que eu me encontro na sua bagunça.” Como se precisasse de muito mais do que isso para dar o recado. Como se isso não fosse completamente suficiente para definir tudo.
Fechei, excluí o arquivo. As fotos e as palavras não ditas. Eu excluí também os meus planos. Tinha que ir à universidade entregar a versão final da minha dissertação. As imposições do cotidiano sempre te tiram de determinados lugares mentais, o que deveria ser bom, mas para mim só reforça o quanto a vida é ingrata.
Assim que desci do ônibus, meu coração parou. Era ele? Não, claro que não. Quilômetros nos separam e ainda quê. Demorei para me convencer de que não era ele. Não podia, não havia fio de sentido. (E em tudo o que nunca fomos, há algum?) Mas, meu Deus do céu, parecia. Mais magro, mas com a mesma altura, o mesmo tipo de óculos, barba, até o mesmo maldito jeito de deixar o cabelo desleixado meio preso. E. E até o jeito de andar. E de virar o rosto revirando os olhos. Os lábios entreabertos. E. Os punhos pareciam. E.
Antes fosse “só” isso. Vestia uma camisa preta, e uma maldita calça vinho. A exata mesma roupa que ele estava da última vez em que o vi, e impliquei: “Ainda bem que você veio do jeito que eu gosto, bem viado.”
Tive um ímpeto de tirar uma foto, queria mostrar para ele. Mas como sou idiota! Me veio na hora o superego me puxando para a realidade. O que eu ia falar? Parei um desconhecido na rua e pedi para tirar uma foto porque ele parece você, está até com a mesma roupa que você estava usando aquele dia! Não, definitivamente. Meu id já tinha me traído muito nos últimos dias.
Dizem que você só cura uma dor com uma nova. Nunca segui essa crença, isso não existe. Na verdade, você só percebe que estava curado da dor antiga quando a nova se instala. Nos acostumamos à dor e a reforçamos. Você só vai sair dali quando algo ou alguém tirar você do lugar; geralmente, de uma forma ruim. Daí esse endosso de que uma dor cura a outra. Definitivamente, isso não existe. Schopenhauer tinha razão. Eles sempre têm razão. Todos eles. É a dor que te faz experimentar o real. É ela que te faz reorganizar o seu caos, rever os seus labirintos. Perceber onde você realmente está, se encontrando naquela bagunça. Bagunça, mas que ironia.
Eu quis muito acreditar que ele era a fuga óbvia. Eles não tinham absolutamente nada a ver um com o outro, eu não buscava um no outro, eu não comparava. Mas eu queria acreditar nisso, que na minha mente eles se misturavam. Sublimação e transferência, tão óbvio, isso explicava todos os mistérios do mundo. Bem confortável ter uma explicação. (Sou obcecada por sentido, e, no entanto.) Balela. O toque que eu sentia em mim era bem claro. A memória sensorial (é assim que se fala?) tão viva nunca deixou margem para dúvidas.
Em um dos livros que eu estava revisando, li que o prazo médio para se curar uma dor psicológica, por pior que ela seja, é de três meses. Mas tinha um ano e eu ainda sangrava por aquela situação que tinha feito com que eu fosse do ápice da felicidade ao fundo do poço sem aviso e sem escala. Comecei a pensar em quanto, então, eu só reafirmava e acreditava estar em uma situação em que talvez eu não estivesse mais. Mas então veio a ressalva, no livro também estava escrito que esse era o prazo para pessoas mentalmente saudáveis.
Eu nunca fui isso. Eu só tentava transferir todas as minhas rachaduras (esquizo…) para o meu papel de mulher-maravilha superprofissional, super-resistente, super dá-conta-de- absolutamente-todas-as-coisas. Como ser reservado, introspectivo e fugir ao máximo de exposição quando tudo em você grita? Grita, assim como grita seu medo material de falar em público. Assim como gritam todas as suas reservas, bloqueios e grades mentais se traduzindo no seu pânico de lugares fechados.
Eu sei que você vai ler isso em algum momento. Me entenda, escrever cura. Talvez também funcione desse jeito para você. Mais do que nossos desejos e amarras nos impulsionem ou impeçam (geralmente ambos ao mesmo tempo, no paradoxo tão clichê da exposição), é uma necessidade. E eu só precisava, escrever é a minha maneira de (não) enlouquecer. Não me procure.
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