25.9.17

Livro 3, Capítulo 3 - parte 2

Lavínia não aguentava mais rolar no sofá entre músicas de gosto duvidoso e chocolate. Não tinha encontrado nenhuma loja aberta para comprar a cama, depois do café na livraria com Elizabeth. Talvez no sábado? Estava tão acostumada ao ritmo de vida frenético, que era estranho demais ficar à toa.
Tentou escrever, mas nada saía. Não sabia se era uma fase sem ver poesia nas coisas, ou se só andava “engolindo muito”, mas havia uma seca de inspiração. Nem o blog atualizava, agora ele estava permeado só por textos de Carradine, o máximo que Lavínia fazia vez ou outra era a contribuição do “plot” ou de um título eventual. Carradine era a pessoa mais criativa e perspicaz do mundo, mas tinha um fraco para títulos.

O tal editor da Ghamma cujo nome era Ela Nunca Ia Decorar Nem Nome Nem Rosto tinha a chamado para uma festa. Será que era inadequado ir com Ela Nunca Ia Decorar Nem Nome Nem Rosto para a tal festa? Ela não queria nem de longe dar algum tipo de esperança a ele, e já tinha avisado de uma forma que soou até meio grossa, mas vai quê?
Mas tédio definia como se sentia, e decidiu que iria à festa. Havia uma possibilidade de Ela Nunca Ia Decorar Nem Nome Nem Rosto ser gay pela temática do evento e ter a chamado na amizade, não havia? Lavínia ia se fiar nisso, ou fingia que acreditava nessa hipótese, ficar direto em casa sem fazer nada era estranho. Estranho demais.
Combinaram às 23h, e ela se deu conta em cima da hora de que não tinha nenhuma roupa digna. Tantas horas em casa – o quê? Umas quatro? – sem fazer nada fizeram com que Lavínia fizesse faxina mesmo no apartamento já limpo e não satisfeita lavado praticamente todas as suas roupas. Esse “todas” nem era tanto assim. Catou o único vestido razoável que encontrou, embora ela parecesse um parangolé do Hélio Oiticica dentro dele. Por que tinha aquilo no armário? Ah, que diferença faz?! Serve.
Tinha acabado de entrar na tal festa quando Ela Nunca Ia Decorar Nem Nome Nem Rosto mandou uma mensagem falando que ficou cuidando do namorado com febre. Gay. Agradeceu ao universo. Então era amizade mesmo. Amém! Com essa informação nem conseguiu ficar puta por ele desmarcar tão em cima, com ela já dentro da boate. Bom, já que estava lá e com Well you’ll never find it there if you’re looking for it tocando, até que não parecia tão ruim, e na festa gay colorida e regada a glitter, o traje estilo parangolé até que não destoava tanto do ambiente.
A boate tinha três andares, e Lavínia ficou no segundo em uma fila em que um rapaz com uma máscara de O Fantasma da Ópera fazia desenhos nos rostos das pessoas com tinta neon. Para que pensar na procedência da tinta? Enquanto esperava que o cidadão pintasse seu rosto, observou um “seu número” ao fundo da boate. Como era bonito! Efeito da meia-luz ou do álcool que ainda nem tinha bebido? Talvez agora ela não quisesse ser tão anônima assim. Nem estar travestida de parangolé. Mas só se pode jogar com o que se tem. Ele estava todo de preto e touca, e mordendo bundas. Espera, mordendo bundas?
– O que houve?
– Oi? – disse Lavínia para o fantasma da ópera.
– Aconteceu alguma coisa? Você se mexeu e borrei um pouquinho. Vou consertar.
– Não, nada. Tudo bem.
Esperou o cidadão terminar a arte, observando o “seu número” ao fundo, que permanecia imbuído na causa de morder bundas. Estar naquele evento alternativo seria ruim para a sua imagem na Ghamma? Lavínia e suas manias. Se Ela Nunca Ia Decorar Nem Nome Nem Rosto a chamou, talvez não tivesse problema. E se?
– Já terminei aqui, ok?
Parecia não ser a primeira vez que o fantasma da ópera estava avisando a ela. Segunda vez que tinha ficado meio hipnotizada com o mordedor de bundas? Isso só podia ser a idade se avultando.
Foi até o bar tratar de ficar bêbada para endossar o padrão do que se espera de um sábado à noite; com severas dificuldades, já que o bar ficava no último andar, que era um terraço e estava bem cheio. Quando finalmente conseguiu chegar perto do bar, viu que o mordedor de bundas estava bem na sua frente. And you never would have thought in the end how amazing it feels just to live again. It’s a feeling that you cannot miss.
Ficou meio perturbada de ele praticamente ter se materializado ali, e meio sem saber o que fazer, o que durou uns parcos segundos até que sentisse alguém pegando no seu braço.
– Tá sozinha por aí, gata?
– Sim. Não. Quem é você? Você tá me machucando!
Um cara aleatório surgido do nada estava tentando beijá-la, completamente bêbado, e naqueles segundos do tempo de reação entre pensar se deveria reagir agressivamente ou ser educada, foi puxada para o mundo real.
– Ela tá comigo. Algum problema?
– Ih, fudeu. Desculpa aí, cara! – O sujeito aleatório saiu meio cambaleando para trás, meio rindo. Estava transtornado; como diria Carradine, ele não estava puro.
– Tá tudo bem contigo, moça?
– Elizabeth?!
– Lavínia?! Você aqui?!
O cara aleatório já tinha sumido na multidão, mal tinha dado tempo de digerir aquela cena, e Lavínia notou com surpresa que o mordedor de bundas, o “seu número”, o mesmo que tinha livrado ela do tal sujeito, era Elizabeth.
– Obrigada por isso, eu nem tive tempo de pensar, estava distraída olhando pra você.
– Olhando pra mim? E por que não falou comigo?
– É, eu. – Aquilo tinha saído sem querer, e Lavínia ficou sem graça. – Na verdade, eu não tinha reconhecido você, eu só. – Elizabeth sorria como se sorri para um bichinho de estimação fazendo alguma besteira. Era bem assim que Lavínia se sentia, devia estar fazendo aquela cara de O que tá acontecendo?.
– Eu tô aqui disfarçado! – implicou com ela, puxando a touca.
Lavínia ficou desconcertada. Ela era ruim mesmo de identificar rostos, mas como não tinha reconhecido logo ele? Estavam juntos mais cedo e. Ela se interessou por ele de novo? Mesmo sem saber quê. Foi tirada dos seus devaneios por um beijo dele, na bochecha. Ela não esperou Elizabeth mostrar, através daquele cumprimento, se em Brasília se dá um beijinho, dois ou o que quer que seja. Segurou seu rosto e o beijou na boca de rompante. Mas logo se arrependeu. Eles não eram um “nós” para ela fazer aquilo. Ela só. Elizabeth correspondeu, e pegou Lavínia no colo. Um burburinho se formou na fila atrás deles, aparentemente estavam atrapalhando o andamento, e Elizabeth saiu com ela do caminho.
– Você tá se profissionalizando em morder bundas? Ou é algum desmando do universo? – Lavínia tentou brincar, mas sentiu algo que não esperava. Claro que não era ciúme, fala sério!.
– Você viu isso? – disse ele com aquele sorriso gostoso. – É uma mania quando eu bebo.
– E eu achando que o comportamento ébrio mais inusitado era filosofar com um martelo.
– Suas referências acabam comigo!
– Você não disse que hoje ia tocar quando saísse do consultório?
– Eu acabei de tocar.
– Mas.
– O evento em que ia tocar com a minha banda é esse.
– Ah, eu.
Lavínia quase não teria percebido o sorriso de Elizabeth tão perto, se não tivesse mania de beijar de olhos abertos. E o cheiro meio doce que estava sentindo em suas roupas desde cedo, agora reconhecia, era o dele. Aquele reconhecimento. By the way your hands were shaking rather waste some time with you.
É, Lavínia não precisou da cama naquela noite.
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Todos os videntes têm razão – Livro 3, Capítulo 3 (continuação).

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