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Ah, Brasília. Lavínia aterrissou no aeroporto com o cheiro do improvável. Desceu também secando as lágrimas do pânico de avião. O jeito era confiar na indicação do tal editor, foi tão solícito vendo o apartamento, tomara que fosse mesmo decente. Chegou e o apartamento era bem bonito, e maior do que ela imaginava, com a vista linda típica do Jardim Botânico.
Não era pra essa porra ser mobiliada?, falou consigo mesma reparando que o apartamento era, de fato, todo mobiliado, exceto por um simples móvel que faltava: a cama. Para quem tinha morado alguns meses naquele conjugado em Não fiz nada pra merecer Niterói, meu Deus!, aquele sofá estava ótimo. Ele era quase maior do que o conjugado inteiro. O apartamento de Brasília era bem maior do que o da Rua das Laranjeiras, aliás, embora se ela pudesse escolher teria ficado lá. Que merda que ela ia fazer em Brasília?
Bom, é a tal história de tentar ver o lado bom das coisas. O Rio nos últimos tempos estava foda mesmo. O bairro era lindo e o apartamento idem. Pelo que o editor tinha dito para ela ao telefone, não teria vida dali em diante, então ia aproveitar até assumir na Ghamma, dali a dois dias, para tentar conhecer um pouco do novo lugar. Da nova vida.
Percebeu com ironia a mistura de amar o que faz e ser atraída para isso, porque o lugar em que ela resolveu se desligar de trabalho, conhecer a cidade, se distrair, relaxar etc. foi justamente uma livraria! Só se deu conta disso quando deu de cara com o logo gigante da Ethal nas prateleiras. Pegou com carinho o primeiro livro que traduziu lá. Animações para principiantes. Abriu a folha de rosto com um sorriso, depois de meses ela finalmente conseguia trazer um sentimento bom da Ethal, que não fosse só Gabriel, mesmo tendo dado de cara com o nome dele ali, bem em cima do dela. Edição Gabriel V. Tradução Lavínia Lavisse. Que ironia os livros eternizarem certas coisas que o tempo leva. Pelo menos não era mais uma punhalada ler o nome dele. Talvez agora ela conseguisse desvirar todos os livros da Ethal da sua estante.
A sensação de cura que sentia, junto com Is this to end or just begin tocando ao fundo, fazia Lavínia pensar que talvez Brasília não fosse assim tão ruim. E Lavínia via algo positivo em ser totalmente anônima, mesmo que soubesse que esse anonimato duraria pouco tempo; logo a Ghamma faria seu nome no novo estado, o que era muito bom, mas por um lado a faria encarar todas as máscaras do convívio social. O anonimato era uma bênção tão grande. Como era bom estar em um lugar completamente desconhecido, se sentindo completamente deslocada e estranha. Como era bom ser só mais uma. Sem referências, sem conexões, sem laços.
– Lavínia?
Mas alegria de pobre dura pouco “mermo”, né? Parecia até sacanagem! Em outro estado, Senhor!!! Nem em outro estado ela conseguia se livrar disso? A pessoa que estava a chamando estava do outro lado da prateleira, e ela viu de relance metade de um rosto entre os livros. Só faltava ser algum autor que a prenderia em uma conversa de horas. Torcia para ser engano, mas com aquele maldito nome meio incomum, era difícil que não fosse com ela. Olhou para trás na esperança de ver outra pessoa, mas não tinha ninguém, então percebeu que não tinha mais ninguém na livraria e percebeu também que era um feriado em uma sexta. Quem mais iria a uma livraria em pleno feriado na sexta além dela? Bem, aquela alma infeliz que a estava chamando. The cup is raised, the toast is made yet again. Voltou a olhar para a estante e a pessoa que a chamara tinha sumido. Olhou de novo por entre os livros. Nada. Tomara que tenha sido uma alma mesmo, antes assombração do que gente, o pior dos fantasmas!
– Lavínia!
Agora ela reconheceu a voz. Tingindo de improvável aquela coincidência, uma sensação boa.
– Elizabeth?!
Lavínia o olhava de cima a baixo, incrédula.
– Você aqui em Brasília?! Um brinde ao mistério!
– É uma longa história! – disse Lavínia, reparando que Elizabeth estava completamente diferente das outras vezes que ela o encontrara. Vestia uma camisa preta e uma calça vinho, seus cabelos estavam presos e ele estava de óculos. Ele ficou incrivelmente charmoso de óculos. – Mas e você? Não tinha se mudado pro Rio? E sua banda? E a barraca de mandinga Express?
– Uma de cada vez – disse Elizabeth com aquele sotaque esticando o s. Lavínia gostou daquele acaso. Lavínia gostou muito daquele acaso. – Mas, antes.
– Antes?
Elizabeth fez um bico para ela como se fosse um sinal para ela ficar quieta, colocando dois dedos em seus lábios. Lavínia sentiu as pernas amolecerem com aquele toque, o que a pegou de surpresa. Elizabeth era absurdamente bonito, os olhos apertadinhos ornavam perfeitamente com os lábios grossos e o nariz grande. Lavínia era tarada por pessoas de nariz grande. Ela não tinha reparado nem quê. Seus pensamentos foram interrompidos por um beijo de Elizabeth, fazendo o mundo rodar em torpor. Puta merda, eu devia ter feito isso antes. Que perda de tempo!, pensou Lavínia.
– Eu gostei disso – disse para ele.
– Por que mesmo demoramos tanto para fazer isso? – disse Elizabeth erguendo só uma das sobrancelhas, a coisa mais sexy do universo.
Lavínia se aproximou de novo, com um sorriso, roçando de leve seu nariz no dele. Ali, no ambiente improvável de outro estado, no tédio de um feriado, na livraria vazia, o beijo que materializava aquelas metáforas complexas. Todas as metáforas de Elizabeth eram complexas.
– Elizabeth, eu não acredito em coincidências – Lavínia sussurrou no ouvido dele. Entrelaçando as mãos nos cabelos dela, Elizabeth sorriu, bem perto de sua boca. Aquela proximidade estranha e tão rara que eles tiveram desde o primeiro dia. Yours is the cloth, mine is the hand that sews time.

Todos os videntes têm razão – Livro 3, Capítulo 3.
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