25.9.17

Livro 3, Capítulo 5

[…] Lavínia estava em casa fazendo tradução, tinha colocado a mesa bem perto da janela, do lado daquela vista que ela mal conhecera e já admirava pacas. Era bom trabalhar, o que ela de longe mais gostava de fazer na vida, com aquele cenário e o fundo musical constante. Aquilo lhe inspirava todo tipo de paz. O interfone fez com que a opção entre “liberdade” e “independência” para o título de um livro com freedom no original ficasse para depois. Ah, a segurança de protelar decisões. But you pay me no attention, do you?
Não chegou ao interfone a tempo, maldita bota com um salto de traveco prostituto quase maior que ela inteira, e foi ligar para a portaria. Quando se escorou na maçaneta, alguém abriu a porta, que ela não percebeu que tinha esquecido de trancar, e caiu de bunda estatelada no chão.

– Lavínia, me desculpa – disse Elizabeth a ajudando a se levantar. – Te machuquei?
– Não. Tudo bem – disse Lavínia meio confusa com aquela aparição repentina. – O porteiro não devia ter deixado você entrar.
– Essa não é uma forma muito educada de recepcionar as visitas.
– Não, é quê.
– Eu tô brincando – disse Elizabeth percebendo a confusão de Lavínia. –  Eu falei o mesmo pra ele. Aparentemente sou confiável. Por que essa bota? Preciso rever o que falei sobre recepcionar visitas. – Elizabeth ergueu só a sobrancelha esquerda, com aquela sedução debochada tão típica dele, e Lavínia riu.
– Eu comprei mais cedo e gostei tanto que não tirei. Tá aprovada?
– Sério? Demais!
– Claro que não, acho que comprei um número menor, não sai do meu pé de jeito nenhum. GRAÇAS A DEUS que você tá aqui, me ajuda!
Lavínia sentou no pufe da sala, e Elizabeth se ajoelhou para puxar a bota; com a força, ela caiu para trás, bem sexy ao contrário, Maldito pufe mais leve que algodão, isso que dá comprar essas porras vagabundas pela internet só por causa  da cor!
– Putz. De novo!
– Pelo menos a bota saiu, né? – disse Lavínia rindo enquanto Elizabeth a ajudava a se levantar. “De novo!” – Nós dois juntos somos um atentado. Ainda bem que eu tava longe da janela.
– Nunca deviam deixar Peixes e Libra. – Elizabeth não continuou, e Lavínia mordeu o lábio inferior gostando das possibilidades daquela lacuna. – Eu te derrubei metaforicamente quando te conheci e agora foi literal.
– Pois é, ainda bem que “tenho gostos peculiares, você não entenderia”. – Elizabeth deu aquela risada gostosa fechando os olhos. – Gosto de você de óculos – disse Lavínia ficando nas pontas dos pés para chegar mais perto do seu rosto.
– E eu “goxto” desse seu sotaque de onda que já foi.
– “Shhhhh…”?
– Desse jeito, “mexmo” – implicou ele. I’ll be there by your side, just you try and stop me. – Você traduz escrevendo? Escrevendo outras coisas, no caso.
– É. – Elizabeth tinha visto o arquivo do bloco de notas aberto atrás do InDesign. – Acho que não consigo parar de escrever nunca.
– Escrever é um tipo de catarse ou cura?
– É assim pra você? – ela voltou a pergunta para Elizabeth, sabia que ele também escrevia, tinha feito uns stalks descompensados que calam de blog a sua árvore genealógica e vídeos dele cantando Audioslave no YouTube. Ou mais descompensado ainda era ela achar que podiam ser almas gêmeas, mesmo sem acreditar nisso, só porque ele também gostava de usar amiúde nos sonetos que escrevia. Ou simplesmente por escrevê-los.
– Às vezes.
– Ultimamente tem sido o meu diário dos desejos. Talvez por isso nos meus pensamentos eu esteja sempre escrevendo. Os nossos sonhos são uma forma meio nebulosa e caótica de escrita, eu acho.
– A maior parte não vai para o papel – os dois disseram ao mesmo tempo. Lavínia sorriu e Elizabeth se aproximou, colocando uma mecha de cabelo dela atrás da orelha.
– Você tem “Make it happen” tatuado.
– E?
– Por que não faz esses sonhos acontecerem?
– A única materialidade possível para alguns deles são as palavras, Elizabeth.
Ele não a beijou, só deixou a boca bem perto da dela, e sua respiração tão quente, com o fundo de Don’t you shiver?, era então mais eficaz do que as palavras.
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Todos os videntes têm razão – Livro 3, Capítulo 5.

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