Pela primeira vez Lavínia não tinha chorado no avião. Era só ponte aérea, mas para maluco isso não faz tanta diferença, não é? Tinha pânico de avião e de falar em público, e foi logo escolher uma profissão em que tinha que passar pelas duas situações com frequência. Lavínia não fazia boas escolhas na vida.
Não chorou, mas jamais passaria incólume. Dessa vez, tivera uma crise de riso e descobriu que era ainda mais difícil de administrar do que as lágrimas. As pessoas iam saber o que estava acontecendo com reações piores do que a vez em que viajou com um namorado e chorava tanto entre gritos de: “Alguém me tira daqui, não quero” que perguntaram, discretamente, se ele a estava sequestrando.
Dessa vez estava sozinha. E rindo compulsivamente. Talvez o mais estranho não tenha sido isso, mas após um voo supertranquilo com um céu impecável, ela ter descido desde o assento 26, vulgo asa, Juvenal, chefe filho da puta, vê se asa é lugar pra escolher pra paranoico?!, cumprimentando todas as pessoas com um sorriso gigante e palavras otimistas, do tipo: “Que bom que está todo mundo bem! Tudo certo aí, né? Ô, glória, vamos que vamos! Deus é dez!”
Os cidadãos faziam umas caras ainda mais confusas do que quando a viram rindo. Vida que segue. Desceu e levou a primeira cravada. Metade dos livros que tinha levado para o lançamento tinha sido extraviada, sessenta. Mas como a sua vida é o Polishop da derrota: “Pensou que era só isso? Ainda tem mais isso! Por essa você não esperava!” e desgraça pouca é bobagem, já sabia que ali só estava começando o 7×1 interestadual.
Pausou o It’s times like these you learn to live again que tocava para ligar para Juvenal. Ele prometeu dar um jeito de enviar o restante da tiragem no final do dia, se não recuperassem a extraviada. Rezava a lenda que tinha uma boa sobra de gráfica.
Elencando as bolas que entraram com goleiro e tudo ou vice-versa: 1 a reserva no hotel era só para a parte da tarde e ela chegou às dez; 2 seu único sapato era mais alto que ela depois de virar meia Ice (Lavínia não faz boas escolhas); 3 ia atrasar para a reunião, além de ter que ir carregando livros, roupas e salto; 4 o sono das duas noites anteriores completamente viradas pelo nervoso da viagem estava começando a se pronunciar; 5 tentou comer algo, mas descobriu que deram o salgado errado e era camarão (pelo menos alimentou um mendigo); 6 só já na reunião percebeu que seus cartões, os livros de amostra e todo o material da Ghamma que tinha levado também estavam com os livros extraviados; 7 se despencou USP-Congonhas na esperança da tiragem prometida, mas Juvenal “esqueceu” de avisar que não conseguiram remeter nada, e ela foi à toa.
Gol de honra: conseguiu fechar a mais afamada parceria com a USP. Ficou tão extasiada, que esqueceu todo o resto. O Uber caríssimo e a reserva do hotel que só descobriu na hora que não tinha sido paga, ainda foi zoada de idiota: “Não sabe o que é uma reserva, minha filha? Só tá reservado, só isso. É por isso que se chama reserva.” Com tudo o que vinha acontecendo com ela na Ghamma, sabia que dificilmente seria reembolsada de coisa alguma.
Já estava na hora do lançamento, era só o tempo de tomar banho e deixar as coisas. Não, na verdade, não, porque ela já estava até atrasada. Mas suada e nojenta daquele jeito não dava.
Glorificou de pé pelo motorista abençoado do Uber ter passado com ela no drive-thru do lugar mais feliz do mundo, e conseguiu pelo menos comer um hambúrguer enquanto tomava banho. Sim, embaixo do chuveiro, na maior rusticidade, a primeira refeição do dia. Amém!
Foi para o lançamento dar a notícia aos autores de que só havia metade da tiragem, com toda a covardia do mundo, mas não tinha jeito. Não teve coragem de avisar ao longo do dia, e deixou para falar de “corpo presente” mesmo. Juvenal, seu filho da puta! Tinha que deixar a bucha aqui dar a notícia pessoalmente, né?!, xingava todas as gerações do seu chefe.
Pelejou subindo a Augusta de salto, paralelepípedo e todo o amor do mundo. Era um lançamento importante, muito trabalho e mérito dela. Mérito dela também em conseguir contornar um evento daquele porte com livro faltando, mas foi! Ainda conseguiu fazer uns contatos bons, e voltar para o hotel se sentindo a pessoa mais bem-sucedida e sortuda do mundo. Ou era muito “mulher de malandro” ou realmente fazia valer a máxima de ver o lado bom das coisas.

“O que eu mais gosto em você é que você não é real”
Lavínia tinha empacado nessa frase no bloco de notas. Empacado não. Era tudo o que tinha escrito e precisava atualizar o blogue com um total de zero inspiração. Era melhor voltar para a tradução, mesmo que o wi-fi do hotel não pegasse no seu notebook nem com reza braba. Pelo menos tinha música. You’ll never change what’s been and gone casava certinho com o livro de psicologia que estava traduzindo. Freud e os filmes sabiam que as consequências, frutos de “e se”, “mas se” e eventuais “ainda”, são só um efeito. O que foi, o que poderia ou deveria ter sido. O futuro é produto, em processo constante. Just try not to worry you’ll see them some day.
Olhou a hora. 18h30. É, nem blogue nem tradução. Tinha outro lançamento, pelo menos com a tiragem completa, e precisava se arrumar e parecer gente. Largou tudo do jeito que estava. We’re all of the stars.
Lançamento vazio, autor chato. Duas amigas dele estavam incansáveis em absorver Lavínia para as mais variadas conversas que disputavam em relevância e conteúdo interessante. “Quando tô mal vou pro shopping e gasto #@$!# reais e fico ma-ra-vi-lho-sa.” Lavínia tinha que ser profissional e educada, então disfarçou enquanto pôde. Ela não bebeu caipirinha no Cálice Sagrado para ter que ouvir aquelas pérolas! Foi para o fundo do bar em que o lançamento estava acontecendo e ficou conversando com o barman, que tinha conhecido no dia anterior.
– Nossa, Lavínia, que antissocial, vem conversar com a gente!
As tais amigas foram atrás dela, insistentes. Tinham cismado mesmo com ela. Lavínia tendia a atrair isso. Virou o Mojito, especialidade da casa, e resolveu encarar de coração aberto. Nem tão aberto, porque pensava na “janela do suicídio” do antigo apartamento da Rua das Laranjeiras, e que podia torná-la literal. Mas com um suicídio compulsório, por assim dizer.
Lavínia mais concordava e sorria do que qualquer outra coisa. Estava completamente aérea. Mais aérea do que um dia em que Carradine lhe apresentara um crush em uma festa e, horas depois, ela cutucou Carradine: “Tem um gostosinho ali atrás, pega ele.” Era o próprio.
Lavínia só sabia que o papo tinha descambado para uma mistura de astrologia e algo sobre “vida afetiva ser uma catástrofe”, mas ela só conseguia pensar mesmo em quanto acha essa palavra bonita. Catástrofe. Sei lá, soa bonito. Não ser uma palavra propriamente boa deixava tudo ainda mais bonito. Catástrofe.
– E você, Lavínia?
– Eu?
– Eu só quero alguém que me faça bem. Não acha? – disse a mais afetada delas após elencar uma lista de atributos. Parecia um açougue de adjetivos, melhor que dicionário de sinônimos.
– Isso não existe. Se não fizer vibrar a alma não serve. O assunto é esse? – Lavínia sentiu que suas palavras pareceram deboche, mas não, não foi isso. Era realmente nisso que ela acreditava.
– É muito príncipe encantado.
– Claro que não. É ao contrário. Eu não tô buscando qualidade, mas uma pessoa. Aliás, eu não tô buscando merda nenhuma.
– Ninguém é perfeito – disse a outra, que tinha cara de quem comeu e não gostou.
– Ainda bem. Só não quero plano B nem conveniência, isso é pouco demais pra mim – disse Lavínia, bufando.
– Então fica sozinha – disse a afetada trocando olhares com a “comeu e não gostou” com certo sarcasmo. Elas nem sabem da minha vida, por que fui dar ideia?, pensava Lavínia.
– Sim. É minha opção, e se não me tirar do chão eu prefiro mesmo ficar sozinha, tô bem assim.
– Nem sempre a pessoa que você mais gosta é o melhor pra você, Lavínia – disse a afetada entre risinhos.
– Que insanidade essa história de melhor pra você. Essa lógica não existe. A verdade é que a gente só sabe se é ou se não é se arriscar e viver. Não tem como saber previamente, por causa de qualidade ou do que quer que seja. Estamos falando de seres humanos e não de enciclopédias. De incertezas da vida e não de logaritmo. Isso tudo é só uma desculpa pra falta de coragem. Porque se a pessoa mexe com você e te tira do lugar você fica vulnerável. Tudo em você logo grita que não vai dar certo, vem na forma de intuição, indício ou chame como quiser. Vem na forma desse discurso de tal outra pessoa dá mais certo. Só pra fugir mesmo. Mas não é razão. É tudo menos razão. Não tem como racionalizar isso, porque isso não tem razão alguma. É só covardia mesmo. Não dá pra prever e criar essa lógica. Isso é que é ilógico, aliás, tentar criar lógica pro que não tem nenhuma. As pessoas e a vida não são essa matemática certa e ninguém tem bola de cristal. – Lavínia cuspiu as palavras de um jeito que mal tinha prestado atenção nelas.
– Elizabeth?
– Quê?! – Lavínia falou ao mesmo tempo que a afetada. Óbvio que o nome de uma delas não seria outro. Ah, a vida.
– Onde mesmo a Lavínia tem Vênus, Elizabeth?
– Virgem – disse a “comeu e não gostou”. Em que momento Lavínia tinha dado dia e hora de nascimento para elas? Devia estar mais desligada do que achava.
– Nossa, mas não era pra ser assim. É retrógrado? Ou tem Marte em Fogo?
– Não dá pra mim – disse Lavínia se levantando. Foda-se a educação. Estava puta ou algo do tipo.
– O que houve? – perguntou o barman com uma cara meio preocupada.
– Tô irritada. Só queria estar em casa.
– No Rio?
– É – respondeu Lavínia. Sim, sua casa era no Rio agora. E sempre seria de muitas formas, ainda que, no fundo, Lavínia achasse que seria eternamente apátrida. Mas um tipo de memória sensorial naquelas palavras fez com que ela percebesse que não era do Rio que falava. Era Brasília. E não, definitivamente, não era por lá. “Sua casa” era Elizabeth. Por mais sem sentido e ilógico e sem a maldita razão matemática. Sem bola de cristal. Só com a coragem e toda a vibração possível na alma. Era Elizabeth.
Chegou no hotel e foi procurar a hora certa do voo para programar o despertador, quando viu a mensagem de Juvenal, aquele maldito. “Cancelei o seu voo pro Rio amanhã. Preciso que fique mais dois dias, ok? Amanhã cedo te ligo e passo as coordenadas.”
Ok, respondeu. Não faria a menor diferença.
Tentou dormir, mas, apesar de tarde e exausta, só rolava na cama sem sucesso, e pensou em fazer a única coisa que tinha esse poder quase místico de sossegá-la um pouco: escrever. Olhou aquela frase no bloco de notas: “O que eu mais gosto em você é que você não é real” e, depois daquela noite, tudo fez sentido. Tão óbvio.
Entendeu por que não tinha conseguido sair dali e escrever. Era mentira.
“Eu tô em outro estado. Nem assim consigo parar de pensar em você. Inferno.” mandou para Elizabeth. Logo se arrependeu, se fizesse algum sentido para ele, teria procurado ela, não teria? Malditos dois meses de hiato sem falar com ele, em que ele não saíra dela um dia sequer. Mas também agradeceu aos céus de não ter como apagar a mensagem já enviada. Elizabeth estava doendo bem mais do que Lavínia podia esperar. Bem mais do que devia. Precisava voltar a falar com ele. Mesmo que fosse só isso mesmo. Nada além do normal para a vida dela, um compêndio de muitos “só isso mesmo”. Assim que escreveu para ele, foi mais eficaz do que ler Bakhtin, dormiu. Em algum lugar do hotel, tocava Listen to your heart before you tell him goodbye.

Todos os videntes têm razão – Livro 3, Capítulo 9.
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