Tinha ido sozinho àquela festa pop no centro da cidade, tequileiros distribuíam bebidas para os convidados os colocando de cabeça para baixo. In the end tocava o seu it doesn’t even matter, as pessoas cantavam em um uníssono assimétrico com braços para cima e glitter no rosto. Eu estava suficientemente bêbado. O mainstream do que precisava para um sábado à noite.
Subi para o terraço, agora era a verdade é que eu minto, que eu vivo sozinho, não sei te esquecer que dava o tom. A plenos pulmões, muitos não esquecimentos se reuniam, um deles era o meu. Pensava na ciranda da vida, na ciranda que são os nossos muitos não esquecimentos.
Um toque suave em meu braço me trouxe de volta à efusão caótica; apesar de ser uma boate GLBT, era uma mulher, com certeza. Me preparei para dizer que era gay, não seria estranho ali, quando vi quem era.
Elizabeth. Pela cara dela, não me reconheceu, mesmo com meus (julgava eu) inconfundíveis cabelos compridos marcando presença justamente no evento e boate que meses antes nos conhecêramos.
Demorei para concatenar. Fiquei encarando. Elizabeth mora em Brasília, o que estava fazendo ali?
– Não te reconheci – me disse.
– Não sabia que estava no Rio.
– Te falei que vinha no começo de março.
Sim, ela havia falado. Mas aquilo foi antes, e eu não sabia se ela realmente… Mas por que logo ali? Na boate em que por um total desencontro do acaso a conheci.
– Que coincidência, Elizabeth.
Ela fez aquela cara para mim cuja tradução eu sabia. “Não acredito em coincidências.” Mas era o Rio e a mesma boate. A mesma festa. Eu queria acreditar que talvez ela tivesse ido de propósito, pensando que poderia me encontrar. Era isso. As músicas “da moda” ainda eram as mesmas, nada havia esfriado. Nada em mim, que fosse ela, havia esfriado.
– Você frequenta muito esse rolê – implicou ela, com o sotaque denunciando as delícias, e crueldades, de se apaixonar por alguém de outro estado.
Era a segunda vez que tinha ido àquela boate, na verdade. E tinha motivo. Um motivo improvável, mas que estava bem na minha frente. Elizabeth tinha cortado os cabelos.
Não podia culpá-la pela recusa das coincidências, nossa história endossava isso. Nossa história endossava tudo. Viradas do calendário atrás, tinha sido ali. Um amigo do Rio tinha resolvido comemorar o aniversário ali, ela ainda não conhecia a boate. Eu, bem, era a boate mais perto de onde eu morava na época, dava até para ir a pé, o tédio de um dia inteiro de trabalho me consumia e então. Dias e noites repetidamente normais, só isso.
Saímos lado a lado em uma foto que fizeram assim que chegamos, fomos ver depois na página do evento, na hora sequer nos olhamos. Segui para o andar de cima, ela, bem, não sei.
Depois houve várias outras. Pelos episódios de que rimos juntos depois sobre aquele dia, estivemos bem perto em vários momentos. A fila do banheiro, aquela engasgada do som, a briga a unhadas por um motivo que ninguém nunca soube.
Na hora daquela mesma música que agora tocava, também nós erguíamos os braços engrossando o coro. Nós dois berrávamos aquela letra, cabelos praticamente grudados, de costas um para o outro. Não foi assim que nos conhecemos. Eu olhava uma menina apoiada na mureta do terraço, Elizabeth, um rapaz que “fazia a limpa” junto com a namorada. Estávamos ambos imbuídos nos amores das nossas vidas de uma noite. Ou menos que isso.
Mas a gente só encontra no inesperado, é o que dizem, o segredo é o lapso do descuido. Foi quando estávamos para ir embora. Eu brincava com meu chaveiro entre os dedos na porta da boate quando olhei para o lado. Então a vi. Ela me olhou de volta. Senti que dei um sorriso involuntário. Não era um flerte, até demorei para perceber que sorria. Que talvez a estivesse encarando com uma cara de desajustado. Ela retribuiu junto com aquela erguida de sobrancelha. O Uber chegou, algum amigo entrou no campo de visão de Elizabeth. Vacilei segurando a porta do carro. Queria ter ido falar com ela. Que grande bobagem, uma mulher qualquer na noite.
O outro dia era domingo, com seus cheiros peculiares que nos impõem a existência. Nada nos impõe tanto a existência como domingos. Um amigo me chamou para um festival do qual ele mesmo desistira. Elizabeth já viera para o Rio pensando nesse show. Ela estava com o ingresso comprado, eu fui catar na hora. Cheguei atrasado. E sozinho. O que não durou muito, encontrei amigos por lá. Algum conhecido no meio deles tentou me beijar, me afastei derrubando um pouco da cerveja na calça. O show estava vazio, mas Elizabeth era de headbangear na cara do palco. Eu sempre fui de viver as coisas meio no mais ou menos. Na linha do tanto faz. Ela era de extremos.
Reconheci a garota da festa do dia anterior ali, mesmo míope e com uma memória fotográfica nojenta. Hoje sei que seria impossível não reconhecer Elizabeth em qualquer circunstância. Ela passou para comprar bebida, talvez. Avancei para falar com ela, percebi que esbarrei em algum amigo meu, meu pedido de desculpas saiu na mesma hora que vi outra mulher, que puxava a mão de Elizabeth. Namorada?! Não sei, parecia uma amiga, as duas saíram correndo para a barraca de cerveja. Que cara? Alguém me pediu justificativas. Sei lá que cara eu estava fazendo. Me devolve essa cerveja.
Foi na fila. Horas depois disso. Um intervalo entre uma banda e outra. Estávamos ali. Estávamos sempre ali, mas dessa vez aconteceu. (Ou já tinha acontecido?) Nos olhamos de novo. Dessa vez reparei melhor. Ela sorriu com seus olhos de vírgula. Adoro o formato dos olhos dela. É um pouco disso toda vez, totalidade inconclusa, continuação interrompida. Eu sabia que estava sorrindo, não era muito intencional nenhuma das minhas expressões. Fiz um gesto engraçado que não sei como Elizabeth entendeu, porque nem eu mesmo entendi.
Eu estava na fila de uma das barracas do evento para cumprimentar uma amiga, Elizabeth estava na fila errada, achando que ali vendia bebida. Eram camisas. Todas as confusões dela têm uma beleza de instante. Eu amo. Ela também me reconheceu do dia anterior, mesmo míope e com uma memória fotográfica nojenta. Conversamos pouco. Levamos alguns esbarrões e tentávamos nos entender entre aqueles barulhos embolados. Como? Nenhum de nós dois sabe falar direito e somos meio surdos, ela me disse. Não sei, Elizabeth. Lembro de algo sobre signos e tatuagens, ela me mostrou a dela do Led Zeppelin na perna. Sempre achei que apesar disso Led Zeppelin não era a banda preferida de Elizabeth. Nunca perguntei.
A tal menina que vi mais cedo com ela voltara, Elizabeth se virou bem na hora que eu ia pedir seu número, na pausa que isso engasgou nos meus receios. A multidão aliviou na minha frente e fui falar com minha amiga na barraca. Elizabeth estava de costas, absorvida em qualquer coisa. Anotei meu número em um papel e deixei perto do balcão, avisando a ela entre olhares. Daí em diante é só blá-blá-blá de histórias triviais e não faz tanta diferença se não foi exatamente desse jeito.
O passado não é um quadro, tem seu próprio dinamismo. Não sei por que insistimos que o que já foi é estaticidade de natureza morta se causa tanta erupção de estados adormecidos dentro de nós. Sempre achei que tudo o que já aconteceu se movia. Dentro de nós, é claro, mas com um movimento particular, que talvez não apreendamos completamente. Sempre achei que o passado se recriava e alterava de alguma maneira, fosse por percepção, fosse pelo que fosse, nem que pelo desejo de contrariar nossa posse de “achei que tivesse sido assim”.
Hoje estávamos aqui. No mesmo lugar. De novo. Eu sorria involuntariamente do mesmo jeito, ela, me sorria seus olhos de vírgula, mais uma minúcia do rosto perfeito. Segurei seus cabelos pela nuca, um pouco mais forte do que ela gostava, eu sabia. Culpa desse hiato, sempre ele. Elizabeth amoleceu nas minhas mãos. Como sempre, veio me inundando… de trégua.
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