25.9.17

O vernissage

Segunda-feira, às 16h, um desconhecido me aborda na fila do café, perguntando de onde vinha meu nome. ZzzZzZz.
Às vezes penso em mentir, é mais fácil do que falar “do Guido Crepax” e, mesmo depois de ter que explicar os muitos “porquês” disso, parecer esnobe e ainda ver o outro ser humano com uma cara tão de idiota quanto a minha nessas situações. (Um desejo oculto: não ser abordada, nunca, em hipótese alguma, jamais, por pessoa alguma, muito menos por desconhecidos na porra da fila do café.)
Ele. Conhecia. Crepax.

Segundo fontes desconfiáveis (o próprio), perguntou sobre meu nome justamente por ser um admirador do trabalho dele. Bem-feito pra mim, né? Aliás, ele conhecia muito mais do Crepax do que eu, que, senso comum toda vida, só conhecia a Valentina. E outros artistas remotos. E.
A conversa acabou durando muito mais do que o tempo de terminar o frapuccino de caramelo, eu tinha que voltar para o trabalho, e trocamos contato. Trocamos, não. Eu passei o meu. Só me disponho a salvar número de possíveis empregadores ou vendedores de coxinha.
“Mal vou chegar ao trabalho, vai ter uma cantada barata dele”, pensei. Ledo engano. Nada. Então notei, era óbvio. O marmanjo parecia versado nas artes da conquista, demoraria uns dias para mandar uma mensagem, algo no estilo “estava ocupado, mas” ou “acabei esquecendo, mas”.
Dito e feito. Três dias depois, lá estava o jogador do amor. Eu não falho. Devia usar meus talentos de pai de santo pra fazer dinheiro, mas só uso para o prazer sádico de dizer “eu avisei” aos amigos.
Continuamos as conversas por semanas, eu estava adorando aquilo. Não é todo dia que você encontra com quem conversar sobre ideias, outras culturas e arte, especialmente sem aquele ar adorniano latente. Mas eu sabia que o momento divisor de águas chegaria. O mais temido, em que eu teria que decidir liberar ou não a bacurinha. Afinal, Freud já sabia que toda interação social se resume a isso aí. E veio.
Quando convidam para bares e cinemas, é muito fácil declinar do convite. Afinal, você pode ir a qualquer um desses lugares a qualquer hora e com qualquer ser humano. (Inclusive sozinho, é claro.) Mas o filho da puta me convidou para um vernissage. Puta que pariu. Vernissage foi golpe baixo. Aí você pensa e me fala: “Mas, Valentina, você também pode ir a um vernissage a qualquer hora e com qualquer ser humano.” (Inclusive sozinho, é claro.)
Não é bem assim, meus caros. Era um vernissage fechado, daqueles que só se entra com convite, do qual poucos ficam sabendo. Além de tudo o filho da puta ainda era uma agenda cultural humana. Maldito! Malandra que sou, me perguntei se o tal vernissage existiria, afinal das contas, ou se seria só um convite, digamos, simbólico. Seria muito fácil se pudéssemos lidar uns com os outros assim: “Sem querer ofender, mas você quer me comer? Porque não vai rolar. Já o vernissage…” Mas não podemos. (Bem como não é nada delicado receber um: “Chega desse papinho de ‘arte conceitual nem gente é’ e libera logo a perseguida.”)
Então, sim, cedemos às metáforas dos trâmites sociais. E como abordar de forma delicada o tópico, ou confirmar que eu gostaria de ir sem a tradução disso soar como: “Tesudo, estou me depilando inteira agora”? Eu gostava das conversas, realmente, mas não queria virar o jantar. Fugi da forma mais tradicional e lacônica possível na nossa sociedade patriarcal: “Que legal! Quando vai ser? Vou ver se meu namorado quer ir com a gente.” Namorado este que não existe, naturalmente. Mas desde que o mundo é mundo o único “não” aceitável é saber que o sacro lugar de um homem já está ocupado pelo seu respectivo chefão da matilha.
O “hmm” do sujeito confirmou todas as minhas suspeitas. Obviamente, o vernissage não aconteceu (pelo menos não para mim), e as conversas foram rareando. Não posso julgá-lo. Entendo o lado dele. Para que gastar latim (às vezes literalmente), referências do Archer e eventuais buscas no Google se não haverá nem um cuzinho de recompensa?
Larguei as conversas abstratas e voltei às preocupações cotidianas sobre o preço do tomate e fofocas do escritório. Com meu corpo a prêmio é complicado, que Michelangelo perdoe meus pecados.
Adeus, vernissage, quem sabe tenhamos mais sorte de nos encontrar da próxima vez.

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