(Atenção: contém spoiler)
O (não) lugar do amor é uma alegoria do sujeito contemporâneo e suas formas fragmentadas de vivenciar o amor tipificada em seu protagonista. Leonardo, um aluno de um curso de pós-graduação em Comunicação, por ter ingressado em um grupo de estudos, se vê forçadamente trabalhando justamente com este tema: o amor contemporâneo. Assim, a obra é metanálise. Uma questão importante a se considerar é que o livro é a contraparte ficcional de um romance-tese em teoria literária, o que coloca um quadro teórico desde a composição dos personagens até a construção das cenas e situações por que eles passam, e dá o tom intencional do caráter mise en abyme do livro.
Construída ora pautada no pathos aristotélico ora nas suas raízes etimológicas que remontam ao mesmo radical de ira – a paixão por antonomásia, a paixão raiz de todas as paixões – cimentadas na linguagem, a paixão é paradoxo, o meio do caminho entre o pecado dos excessos e a completa apatia: a ideia de paixão no livro é processo. Enquanto é a válvula transformadora da ira é também concessão e a estaticidade do pathos, o oximoro perfeito caro aos nossos tempos líquidos.
Afinal, todo o livro, ainda que não se leia a contraparte teórica que lhe dá consistência, é isso: uma elegia ao saudosismo já proposto por Bauman, incomodado com os tempos em que Deus não só foi destituído de seu posto, mas em que os homens querem o seu lugar.
Frente ao amor que resiste, em seu sentido mais clássico (sólido?) das princesas da Disney, Júlio e Manuela, ainda que de fundo, são o grande casal do livro. Representam o amor que resiste a todas às intempéries: à assexualidade da infância, às inseguranças da adolescência, ao destino formando o improvável casal da mulher com seu melhor amigo. É o amor da abnegação, o amor quase cristão, com seu típico fundo de ascese; quem há de negar o quanto a nossa moral social – e não seria diferente com a que perpassa o conceito de amor – é religiosa?
Em contraponto à paráfrase atualizada do amor cortês criada por Gaio, está o amor – o mais adequado seriam os amores – do protagonista. A busca por estabilidade e solidez no relacionamento com Manuela, sua noiva; a paixão mal resolvida por Fernanda, entrecortada pelos muitos objetivos individualistas dos dois. (Amor ascético tem que ter certa dose de abnegação, o que não acontece aqui, ninguém quer ceder. O amor mal resolvido com Fernanda é o que talvez mais tipifique a ideia do amor como não lugar.) E, fechando a trilogia dos amores, a fuga óbvia das responsabilidades que um dia culminam para quem vive em cima do muro: a surpresa do novo em Melissa, protagonista do livro, que com ele deixa claras algumas preferências acadêmicas de Gaio.
Um fundo meio fetichista pode ser lido na relação de Leonardo com Melissa, que reflete a competição e a necessidade do aprimoramento, e, em consequência, do descarte: a coisificação humana como mercadoria cambiável. As relações não se sustentam, pois rapidamente o desgaste as deixa ultrapassadas, o cheiro ocre do prazo de validade vencido. São os amores de fim de semana de que Júlio fala em conversa com Leonardo no começo do livro. O aqui-agora é uma roda-gigante, e, no parque das relações montanha-russa, qualquer tentativa de estabilidade não se sustenta, daí a valorização das oscilações da paixão frente ao amedrontador amor, este maléfico monstro aprisionador e castrador das possibilidades. Lembrando uma passagem do livro, tudo em que cronos se impõe assusta.
O amor de Leonardo e Melissa é isso: aquilo que não é. Frente à idealização do mal resolvido – representado por Fernanda – e da promessa da segurança do eterno – tipificado por Manuela –, Melissa é a que materializa o real, a contraparte da carne, do sexo, da descoberta das sensações. Melissa é todo o amor do real no sentido fenomenológico: é aquilo que se experimenta, o São Tomé do óbvio fazendo resistir alguma subjetividade, a singularidade do improvável na sociedade da troca.
Essa troca se entrevê na própria relação das duas amigas que sabem que compartilham Leonardo, como uma mercadoria que as atende em uma simbiose perfeita: Manuela tem a estabilidade de que precisa para ostentar para sua família tão tradicional; Fernanda, as escapadas dos momentos em que seu individualismo se quebra: sequer ele perdura, muito bem previu Bauman, ainda precisamos do outro.
Os parênteses no título do livro colocam a grande questão que endossa a tese de Gaio: no contemporâneo, o amor é um lugar?
O amor contemporâneo não é mais aquele do conforto, da companhia e da segurança, mas aquele que cria um não lugar, tornando-se um amor paradigmático, dos fragmentos e das (muitas) ausências. Um lugar instável, desterritorializado, ainda pode ser chamado de lugar? É o que fica do livro. O amor fragmentado se mostra hoje no poliamor, nas relações abertas e, no caso de O (não) lugar do amor, nas traições, nos desvios de percurso, nos sentimentos conflitantes.
Com um tom de crítica às mentes às vezes tão revolucionariamente óbvias e padronizadas da academia das ciências humanas, o livro fecha com o clichê praia-sol-cerveja, como a própria autora coloca, propondo a cena urbana como integradora das formas de vida. Também ela é correria e ausência. Também ela, ainda que localizada, é um permanente (não) lugar.
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Originalmente publicado na revista Café Colombo.
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