3.11.17

O telos da história

Ela entrou de rompante batendo a porta do consultório. Bebi mais um gole do uísque e deixei o copo fora de onde ela pudesse ver. Era assim todas as vezes, ela me aparecia decotada com mil mãos e cenários terríveis de algum homem que não respondia suas mensagens. E com toda aquela ideia de que homens mais velhos devem ser "tão diferentes".

Eu era só um espectador distante do seu jogo, em todas as vezes. Nos últimos meses ela criou o hábito de me fazer inúmeros convites, eu declinava da maioria.

Da última vez, não. Da última vez ela me convidara para uma festa na República em que mora. É, com essa ideia toda de semiadultos se embriagando entre violões e alguma utopia de mudar o mundo lendo Marx em um sofá todo colado de porra.

Ela me chamou para o meio da sala quando algumas drogas que encontrou por mãos desconhecidas no caminho já tinham feito seu trabalho. Algum amigo de cabelo grande despenteado, que trocara olhares com ela, devia ter entendido aquele código. Colocou uma música do Portishead. Lembro-me de em alguma consulta ela ter me dito que aquela banda era "tesante". As associações da juventude...

Ela dançou para mim em cima de uma mesinha de centro. E para uma plateia que se avolumou e vacilava entre gritos de tesão e de sarcasmo. Eu estava de pau duro, é claro. Mas não parava de pensar no quanto seria tedioso ter que levá-la a um hospital se caísse dali e me explicar por uma menina de 17 anos.

Também teve a vez que ela ficou nua no consultório. E que me enviou nudes "sem querer". E também as que me enviou deliberadamente. Eu nunca cedia.

Dessa vez acendi um cigarro. Ela gostava quando eu fumava durante as consultas. Dizia que era uma terapia mútua. Ela bagunçava em mim o que eu consertava nela. Eu nunca tinha consertado ninguém. Em vinte e dois anos de profissão, eu era um eunuco. Um coxo. Um míope brincando de atirar dardos. Dardos que talvez estivessem envenenados. A mente humana é um jogo de roleta-russa que conduzimos vendados.

Há quanto tempo ela já estava falando hoje? Quarenta minutos, talvez? Eu sempre me perco no tempo dessas malditas consultas particulares. E me perco também nas coxas torneadas se cruzando e descruzando na minha frente. A única vez que ela usou calcinha, era branca e bem fina.  Marcava todos os pentelhos subindo em linha acima do grelo.

- Eu cheguei a uma conclusão.

- Você acha que ele vai voltar pra mim? - Ela me voltou seus olhinhos suplicantes.

- Eu acho que o universo inteiro é só um mecanismo sofisticado e complexo cujo único objetivo é tu ficar pelada e te tocar e registrar isso em boa resolução. - Bebi outro gole do uísque. Foda-se. - Qualquer fenômeno: um cara colhe arroz no Vietnã, um árabe enraba outro árabe no Iraque, um flamingo alça voo numa lagoa californiana, alguém joga Age of Empires, bolsas em queda, um padre sofre um infarto, tudo isso tá secretamente conectado. É uma máquina orientada a um único resultado: os teus nudes. - Ela me olhou confusa, mas eu apenas continuei, cuspindo meses de provocação e pau na mão literal, pouco me lixando que ela não entendesse a mínima. - Então, fecha-se um ciclo. Em vez da transcendência do Geist hegeliano, o telos da história é o teu corpo pelado.

Ela se levantou do meu divã. Me deu um tapa na cara. E foi embora.

Espero que não me denuncie no conselho nem pare de me mandar nudes. Acho que vou bater umazinha antes da próxima consulta.

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O trecho em destaque, que inspirou o texto, é de autoria do escritor Igor Farias.

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