Eugênia disputava o título de pessoa mais insana que conheci. E olha que conheci várias. A primeira vez que a vi pessoalmente foi, em contraste, a última em que consegui matar.
Não sei como acabei aqui. Não sei como me tornei o "isso" a seus olhos de juiz. Já não lembro sequer como era antes ou se esse antes chegou a existir. Só sei que gostei.
Um dia, se é que posso chamar de dia, há muito essas noções não me acompanham, eu estava aqui: as mãos sujas de sangue, e sabia como encontrá-las. Elas, a quem eles chamam de vítimas. Prefiro acreditar que as liberto. Há grades maiores do que a ilusão do real?
Também eu me libertei, com a única certeza que hoje me acompanha. Sou o arauto da morte. Mas não de qualquer morte, da morte lenta e agoniada, sentindo cada espasmo da fugacidade escapando entre os meus dedos. A vida se esvaindo, se extinguindo. Esses poucos segundos de eternidade.
Esse é o meu maior prazer.
A última me deu trabalho. Não sabia ao certo como encontrá-la só. Morava em uma República, e, como se espera, uma realidade utópica. Muitos semiadultos ainda meio adolescentes, recém-ingressos na universidade. A casa nunca estava sozinha, e esse é o meu lugar preferido para matar. Gosto do paradoxo da segurança e da familiaridade. É assim que mostro a elas como isso tudo é tão falso.
Tive que esperar, e, definitivamente, detesto isso. Esperar me enoja, e prefiro matar com um espírito leve. Sem qualquer perturbação, sorvendo tudo. Olhos suplicantes que desvanecem, oscilações na temperatura que se sentem na pele. A respiração falha.
Ela não estava sozinha quando cheguei, é claro. Mas era só mais uma menina no apartamento minúsculo socado de beliches, garrafas, violão e maconha. Elas ainda dividiam o mesmo quarto, eu não teria muito tempo. Só aquele intervalo enquanto a outra tomava banho, uma provável preparação para sua noite artificial pelo campus.
Não seria problema matá-la também, mas não é assim que eu faço. Matar não é algo indiscriminado.
Ela estava deitada na cama. De bruços, com um livro na mão. Não me dei ao trabalho de ver qual era. Reparei na ironia da música que ouvia. I couldn't buy an eye full of sleep. As surpresas do destino são sempre trapaceiras. Montei em cima dela e tapei sua boca com a mão. Fui rápido o suficiente para sufocar seu pedido de socorro.
– Eugênia! – gemeu, salivando entre os meus dedos. Devia ser a outra, a que estava no banheiro.
Sentir a tentativa de grito premida ali, na minha mão, me instigava. Eram coisas desse tipo que me incentivavam a matar. Que mostravam que a minha vida era essa.
Eu não pretendia sufocá-la, como de outras vezes. Essa é uma morte tão banal. Mas eu não tinha muito tempo. Não tinha o tempo que ela merecia. Cheguei bem perto do seu ouvido e sussurrei:
– Eu vou matar você. Você não pode mudar isso.
Minha gargalhada saía involuntária. Agora ela chorava. Senti lágrimas nos meus dedos. Esperneou um pouco, mas não tentou lutar muito. Gosto mais das que se debatem. Que correm. Que vão até o fim. Implorando. Suplicando.
No criado-mudo, ao alcance das minhas mãos, uma tesoura. O acaso prepara a cena. Estiquei o braço para pegá-la, quando ouvi a porta do quarto atrás de mim. Meu coração deu um sobressalto atípico, e acabei a soltando. Tinha que entrar logo na hora, a maldita.
– Eugênia, me ajuda! – suplicou, correndo para a colega de quarto. Eugênia. Era ela. A mulher misteriosa com quem eu vinha sonhando há meses, eu acho. Agora estava materializada bem na minha frente.
Eugênia fechou a porta atrás de si. Então eu reparei. Então eu entendi aquele sobressalto. Então eu. Bom. Era ela. A tal Eugênia. Eu nunca a tinha visto. Quer dizer, não fora dos meus sonhos, o catálogo onde eu conhecia todas as minhas vítimas. Eugênia me aparecia durante as noites em sonho e me mostrava. Todas elas. Mas, até então, nunca permitira que eu a conhecesse fora dos meus sonhos. Até aquele dia. Foi de propósito, então. Ela me conduziu até sua colega de quarto.
Eugênia tinha longos cabelos, quase tanto quanto os meus, mas vermelhos, não negros. Seus cabelos ondulados me fizeram ter um lapso de distração. De alguma forma, me pôs em transe. Então eu reparei. De novo. Eugênia segurava a tesoura comigo, por cima da minha mão. E a empurrou com força no pescoço da outra, que agora estava a seus pés, e assistia impávida. Foi certeira. O sangue caiu espesso no tapete rosa de pelúcia barata, e me sujou pouco. Bem menos do que eu gostaria.
– Sou a próxima? – perguntou destemida, erguendo só a sobrancelha esquerda. Parecia ansiar por aquilo. Eu deveria, mas, não. Não foi esse tipo de desejo que Eugênia me despertara. Eu não quis matá-la. Mas, dessa vez, não foi por indiferença.
– Não. Como vai explicar a morte da sua colega?
– Não fui eu que fiz isso – disse se afastando em direção à janela, rebolando com maldade. Me olhou por cima do ombro e apontou para a minha mão antes de se virar totalmente.
Eu ainda segurava a tesoura. Ela não a tocou. Do jeito que fui surpreendido, não consegui beber cada detalhe daquela morte, como gosto de fazer. Tinha sido uma vida em vão. Precisava encontrar a próxima ainda aquela noite. Inferno, Eugênia me tirara o prazer de matar. Eu queria que ela ficasse viva. Isso era inédito.
Saí pela ruela desconcertado, vacilando entre os paralelepípedos do Centro do Rio de Janeiro. Comecei a ouvir sua respiração ofegante como se corresse atrás de mim, mas não havia passos. Eu me virei. Eugênia não estava ali, eram somente suas sombras me velando do mundo paralelo em que vivia. Na esquina da Uruguaiana, trombei com ela.
- Isso não tá certo.
- Eu não tenho tanto poder sobre suas vítimas como pensa. - Ela ergueu aquela sobrancelha, me passando uma faca, que logo colocou em seu pescoço. - Vem, eu quero.
- Eu não quero matar você. Inferno!
Saí desabalado pela rua, Eugênia atrás, com faca na mão me xingando aos gritos atravessando a rua sem ligar pros carros. E era a Presidente Vargas envolta em noite.
Aquele era o único jeito, ela berrava, e de alguma forma eu sabia, mas com ela tudo era bem diferente. Eu simplesmente não conseguia. O sangue ressecado nas minhãs mãos agora me dava ânsia de vômito. Eugênia me dera e tirara tudo o que tive. Tudo o que sou, ou era. Como um dia saberei de novo?
Não posso reclamar, prever os fatos é em vão. Não fosse isso, eu nunca na vida teria descoberto como é queimar por alguém.
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Baseado no mito de Hades e Perséfone.
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