23.1.18

Sua casa, nós dois

Cheguei despretensiosamente na sua casa. Me acolheria durante os dias em que eu ficasse por aqui trabalhando, nessa cidade que já foi muito minha, e que há alguns anos se tornou sua.

Nós dois a trabalho em nossas respectivas terras natais, o que me trouxe, te tirou daqui, então; mas essas paredes guardam muitas das suas histórias. E algumas delas foram contadas em um palco em que já fui protagonista.

Sua casa, inevitavelmente, me trouxe aquele nós que há muito estava adormecido. Aquele nós de sexo entorpecido em banheiros de shoppings e em coxias de espetáculos. Aquele nós de muitas mãos tirando nossas roupas. Pra ser específica, eu tirando meu vestido que você estava usando. E pedindo pra você continuar de peruca e maquiagem feminina.

Aquele nós de você falando "agora vou lá vestido de homem pra botar moral" e me fazer rir. Aquele nós de poemas trocados no ônibus e no banheiro de um teatro qualquer. Aquele nós de música e dança.

Aquele nós dos nossos bastidores, que ficou, sabe? Aquele nós que nunca chegou a ser de fato um nós, que se soltou muito antes de formar qualquer laço. Mas tem coisas pontuais que ficam bem mais e você é uma delas.

Aqui, deitada na sua cama, olho como a desorganização da sua casa de artista organiza seu mundo, entre vinis, livros e seu quadro com anotações dos seus roteiros.

E penso nas nossas esquinas e nos nossos cruzamentos.

Meu jeito pedante de escrever, seu jeito pedante de gozar a existência. Minha arte caótica, sua arte tão bem direcionada. Meu caos simétrico dentro de caixas organizadoras, seu caos completamente livre pelo mundo sentindo o vento bater no rosto.

Ando pela casa e ela me traz você, é claro. Sua cozinha ilibada e marcas de mãos misteriosas pela parede do lado da cama. Mãos que nunca foram minhas, tampouco suas - um brinde à transitoriedade -, mas que de alguma forma agora compartilhamos, também.

Mãos que me trouxeram detalhes daquele nós, que misturam tesão e certa conformidade. Rio pensando em uma mistura de "Vai, malandro" com meu conhecimento de causa dessas contorções de noites (madrugadas, dias, tardes...) em claro com você.

Eu estou aqui agora, embora tenha passado anos ausente. Você, ausente, também está aqui. Sua casa me trouxe ávidas suas mãos no meu corpo, seu jeito de me conduzir no soltinho, suas frases de efeito, seus bordões, seu sotaque imitando o meu e vice-versa.

Sua casa não me trouxe gostos daquilo que não é, pelo contrário. Nós fomos; somos, arrisco. E não só pelos nudes trocados e promessas de reencontros, que nunca se concretizaram, nem vão. Simplesmente porque, enquanto estivemos juntos, foi exatamente isso. Estivemos juntos. Entregues, intensos, integrais. E é isso o que faz toda a diferença.

Mesmo na sua casa, não vamos nos encontrar, mais uma vez. Perfeita metonímia de nós dois.

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