1.2.18

A dor do quase

- Eu não teria vindo até aqui à toa, então me escuta - supliquei com o buquê quase se soltando das minhas mãos já apáticas.

- Eu ainda estou aqui. - Não, ele não estava. Estar presente é muito mais sutil, e ele apoiado no portal com a mão na maçaneta dava o acabamento de suas decisões. - Você sabe que eu não precisava ter visto isso, não sabe? - Apontou para as flores na minha mão.

- Não tive tempo de... eu.

- Por que não jogou fora?

- Não se joga fora um buquê de presente no dia 12/6.

- Não foi por isso que você não jogou fora.

- São só flores.

- Não mete essa pra mim! Você adora meter uma sobre os simbólicos - debochou ele - e vem falar que são só flores.

- São importantes pra mim, assumo. Muda alguma coisa?

- Eu não vou nem quero passar por cima desse "importante" pra você, entende?

- Eu sei que não quer.

- Não quero, mas não do jeito que você pensa.

- Você sabe como eu penso?

- São muitas coisas envolvidas.

- A gente nem começou pra saber.

- É exatamente isso. A gente nem começou e já tá tudo uma merda.

- Claro que tá uma merda. Você não dá chance.

- Dentro do nosso contexto eu não quero mesmo dar chance.

- Qual é nosso contexto?
- Você vindo atrás de mim porque tá cheirada, seu marido em cima, uma história toda que só existe na sua cabeça.

- Se escuta. Isso na minha cara é maquiagem, seu doente. Você supõe tudo isso. Até as "minhas" suposições são suposições suas. E você me culpa de tudo que nem me pertence.

- E mesmo assim você vem atrás.

Será que ele reparou que abriu mais a porta e saiu do portal? Merda de mania automática de querer interpretar tudo o tempo todo. Eu o beijei. É, eu o beijei. E foda-se. O que além disso era certo?

- Não sei fazer diferente com você. Mas você podia fazer diferente comigo. - Ele coçou a cabeça, a porta agora estava escancarada. Não era um convite, entretanto. Eu sabia.

- Não dá pra ser assim.

- Você acha que eu não concordo? - falei e ele ergueu a sobrancelha. Houve um silêncio sepulcral em que só nos olhamos e nenhuma palavra parecia certa. Ninguém buscava falar. Ninguém buscava ouvir. Senti o buquê se soltar da minha mão, nenhum de nós dois olhou para o chão. Eu me afastei, olhei pra trás e ele continuava imóvel. Nada daquilo era uma resposta. Nada entre nós dois era uma resposta. Não há saída do labirinto do quase, estaríamos presos e perdidos pra sempre, cada um em uma ponta oposta. Presentes, próximos, desconectados. Estranhos. - Algumas coisas têm mesmo que ficar no limbo do quase.

- Falou comigo? - gritou ele de longe, sem de fato se importar. A porta continuava escancarada. Agora ele estava do lado de fora. Dei de ombros sem parar de caminhar.

- Não, claro que não. - Era totalmente comigo.

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Texto escrito para o Desafio do Poligrafias - um texto por dia durante trinta dias com temas específicos e determinados. Meus trinta textos do desafio estão na categoria PoliDesafio.
Dia 4. Um texto usando apenas diálogos.

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