26.2.18

A imperfeição de se conhecer

Certas conversas parecem preparar armadilhas para que voltemos a nos prender em reflexões pouco exploradas. O único resquício de realidade na nova pintura do vizinho aprisionou meu olhar numa arapuca novinha. Em meio ao cinza monocromático das paredes externas, enxerguei um longo rastro de tinta, deixado por um pingo que deliberadamente escorregou do teto ao chão. Formou a estria que atribui unicidade a um todo absolutamente sem graça, a estria que marca a imperfeição do trabalho e o aspecto cada vez mais satisfatório e real daquela transformação.

A gota mostra o histórico da sua tragetória, deixa-o escancarado para todos que o quiserem ver. Está lá, do alto ao baixo, do início ao fim. Como num daqueles cubos que desenhamos no papel, é difícil escolher a perspectiva que mais nos agrada. O pingo ou o rastro? O rastro ou o pingo? Talvez uma mistura dos dois, um gif artificalmente criado pelas mentes mais imaginativas. No fundo, não importa se será grande ou pequena, simples ou espalhafatosa, a imperfeição é o que delimita um fundo de verdade nas criações que supostamente deveriam ser perfeitas.

Presos ou não numa armadilha, se pensarmos com determinação concluiremos que a imprecisão, o erro e o desvio são o verdadeiro encanto. Num mundo em que nos pedem por acertos em escala nano, encontrar os delizes que marcam nossa incapacidade de controlar todos os fatores é o que nos dá a sensação de alívio e uma inexplicável identificação.

Nós nos sentimos confortáveis com tudo aquilo que, assim como nós, é imperfeito. Com tudo aquilo que por mais cuidadoso e detalhado, tem um toque instintivamente real. Gastamos menos de três segundos para determinar se é válido ou não é, se é normal ou alterado, se gostamos ou se deixamos de gostar. Foi mais ou menos esse o tempo que gastei pra dizer ao meu vizinho que tinha curtido a reforma.

Uma única gota foi capaz de desafiar a busca por exatidão. Uma única gota foi capaz de mostrar que, independentemente do esforço, não se vive uma vida sem erros. Aquela estria simboliza o real, torna toda a mudança um pouquinho mais agradável. Aquela estria ainda está lá, e eu torço para que ele não veja. Do jeito que é, talvez queira pintar tudo de novo.

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Texto escrito por Samuel Aguiar, do nosso parceiro Poligrafias.

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