20.3.18

Dos insights psicanalíticos

Quando escrevo que eu queria chegar em casa e sair catando a bagunça que você faz, irritada por você deixar cada coisa em um canto e nos lugares mais improváveis, queria que você entendesse que não estou supondo que você seja assim. Ou reclamando das vezes (sim, eu sei que foi um único dia "na vida real") que você fez isso lá em casa. Não estou dizendo que te conheço muito e te meço por um episódio isolado e que já te projetei como planta de arquitetura na minha vida, ou já estruturei uma que seria nossa.

Queria que você entendesse que não estou dizendo que eu sou assim, também. Eu posso gostar ou não de bagunça. Eu posso me irritar ou não. Eu posso reparar ou não. Se eu poetizo, romantizo, não entenda como algo pessoal ou muito menos já definido e decretado.

Quando escrevo coisas desse tipo, sobre personalidades e convivência, presto um duplo serviço. Escritores precisam criar imagens, escritores precisam gerar identificação. E todo mundo, em algum momento, passou, passa ou vai passar por essas cenas, não necessariamente em um relacionamento homem-mulher (ou homo, uarever).

Quando eu falo dos seus olhos, isso não me faz descortinar tudo que você é, foi e será. Eu diria quem me dera; mas, no fundo, acho que há vantagens em nunca se saber a totalidade, talvez nem possível seja.

Quando falo dos seus olhos, de vírgula, gravados em mim em algum lugar perto da Esplanada, queria que entendesse que falo de sentimentos que estão além de mim e de você, mesmo que estejam em todos os textos que escrevo, todos os dias, para você. Mesmo que ganhem materialidade nos meus textos nos seus olhos.

Como seres humanos, esses sentimentos nos atravessam, independente de os capturamos como Pokemóns. (E quem faz isso é você, não eu.) Independente de os tomarmos como próprios. Faz parte do meu trabalho, ofício, ganha pão freelance, o que for, colocar características e sentimentos em mim que nem mesmo são meus.

E se falo de mim e me escrevo, ainda que travestida do que não sou, você é consequência.


Simplifico dizendo que é porque gosto de você, mas isso reduz tudo demais e tudo é muito e amplo e  sem fronteiras estabelecidas pra só dizer que gosto de você. Sabe o que é mais louco? Eu faço uma aposta de que você entende. Gostar não define bem, a prova é você insistentemente me colocar no seu divã toda vez que falo isso. Mas eu só sei pintar com palavras e o que serviria pra definir? Eu não sei.

Eu só queria que você entendesse que quando escrevo "você" é porque gostar de você inevitavelmente vai me levar a te fantasiar de linhas, parágrafos, metáforas, personagens e histórias.

Inevitavelmente haverá risadas que demos, dores suas que parece que adivinhei (mas foi sem querer, eu juro, sem dedos cruzados), lágrimas que derramei na janela de alguns aviões, de ida e de volta. Porque é difícil mesmo dizer qual das duas dói mais, sabia?

Inevitavelmente, haverá, principalmente, as risadas que não demos. Que calei sozinha no meu peito, me remoendo de vontade de compartilhar contigo, porque só você ia entender e rir comigo daquele jeito. Ou ia rir, mas no fundo, dentro de você e sem compartilhar comigo, ia julgar e criticar, fingindo até pra você mesmo que você não faz isso o tempo todo. Ok, parei por aqui de te "deitar no meu divã", deixo essa parte pra você, mais uma vez.

Eu queria que você entendesse que os textos que realmente escrevo te pressupondo ou até me pressupondo ou em que exponho o meu desejo doentio por um nós, e talvez essa seja a pior pressuposição de todas, eu não publico. Eu nem te mando a maioria. Sabe aquele texto "Água", que eu disse que "escrevi pra mim", mas te mandei? (Ok, é claro que você sabe de qual falo.) É por aí. Nesses textos eu revelo todas as minhas suposições e vontades. Mas eles são textos que calam. Não são texto como este aqui, que gritam.

Os outros são textos de ordem prática que eu escrevo  porque trabalho. Essa é minha arte, você sabe que ela tem que sair por algum lugar, você que disse. E, olha, acho que a escrita é a mais ingrata das artes, porque quem lê sempre lê de um lugar pessoal e  mesmo assim assume verdades alheias.

Isso é cruel conosco, escritores.

Mais cruel ainda ver esse julgamento vindo logo de você, que também escreve, mas não por isso. É cruel porque você compartilha comigo essa ausência que somos nós dois. Mesmo não sendo, mesmo estranhos, mesmo tudo, você ainda compartilha esse monte de nadas comigo, inexplicavelmente, e isso não é suposição minha, achismo ou a roda da fortuna de alguma premonição minha. É o que é. Assim mesmo, incrustado com a descrença no real.

Você fala dos textos psicanalíticos e esses eu eventualmente publico. Mas esses quem entende além de você? Quem mais, que ler este texto, aparentemente tão carta tão relato tão claro tão exposto, entende? Repare que eu não disse nós. Eu escrevo esses insights psicanalíticos porque preciso, você sabe, e o entendimento fica pra você. Sufocado nas muitas coisas que eu e você sentimos (não digo em relação ao outro...) e que, nebulosas, nem sempre nos damos conta.

E que diferença faz se um desses textos, dos que torno públicos aqui no blog, marco ou não em Cartas a Elizabeth?

Quando eu realmente já escrevi você na vida, estranhos que somos de nós mesmos? Quando eu consegui não escrever você? Nunca é você. É você o tempo todo.

Sempre vai ser assim, a corda bamba dessa rachadura do entendimento. Sim, esquizo, com a típica confusão entre cores e realidades. O pôr do sol em céus, com nuvens baixas ou não, não é capaz de alterar as realidades. Nunca foi a distância. Sempre foi a distância. Mas ela não está em 1.169km. Ela está na impossibilidade que existe em conjugarmos você e eu em um mesmo tempo verbal e, principalmente, como uma mesma desinência. E onde estamos pouco importa.

Quando eu amo você, você entende ainda menos. E não tem um motivo, é só isso mesmo. Simples, direto e intransitivo.

Eu me rendo na minha impossibilidade de me explicar. Eu queria que você entendesse, eu queria muito. Mas mesmo como escritora ainda falho. Então deixo nadar nesse limbo do quase, ir sendo levado pelas correntezas do cotidiano.

Você nunca vai entender e, como sempre falo, é uma questão só minha e eu que tenho que lidar com ela. Eu nunca vou conseguir explicar o que não se explica. Nessa assimetria, fica o "nós" como se fôssemos falha de comunicação, aquela coisa que não acontece, não se desenrola. O desentendimento, o erro do acaso, aquela certeza sólida do "é projeção" e todas essas outras coisas que sempre serão muito mais gêmeas e ao mesmo tempo estranhas do que bairros com o mesmo nome em cidades diferentes. Em estados diferentes.

Polissemias que nos constituem e falsamente nos aproximam, porque, de fato, o que elas farão para sempre é nós tornar opostos e estranhos. Impossíveis.

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Por que você está lendo isso agora? Acho que você já tem a resposta...

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