19.3.18

Nunca foi física

- O cara te acordou pra terminar contigo?
- É, ele teve um sonho em que eu traía ele, sei lá. Eu fiquei puta.
- Não era pra menos.
- Não, você não sabe. Eu fiquei puta porque eu tinha acabado de assinar um contrato de aluguel de trinta meses e eu não queria ficar lá. Se eu quisesse, não teria me mudado meses antes. E ele sabia muito bem que eu só me meti na empreitada de voltar praquela cidade maldita, que eu sempre detestei, por causa dele.

Ela ficou aérea por uns instantes, fazia círculos com a fumaça do cigarro. Eu que tinha ensinado. A mistura da cena atual com as lembranças me socou o estômago.

- Mirna?
- Fala.
- Só por curiosidade... De onde ele era?
- São Gonçalo.

Não quis debochar, mas a gargalhada saiu involuntária. Conheço todas as implicâncias que envolvem São Gonçalo. Mais ainda pra alguém como Mirna, niteroiense.

- Porra, Mirna. Mas São Gonçalo não é namoro a distância. Naquela época você morava em Niterói, que eu sei muito bem.
- A distância nunca foi física. É só por isso que, dessa vez, eu tô indo embora de verdade.

Ela me encarou seca. Eu sabia que embora ela me contasse uma história antiga, era de nós dois que ela falava. Não importava sobre o que ou como ela falasse. Era sempre de nós dois que ela falava. E todo o fundo de humor da história absurda queimava as nossas entrelinhas, era um palhaço de filme trash de terror.

"A distância nunca foi física. É só por isso que, dessa vez, eu tô indo embora de verdade", eu a ouvia em uma ladainha que nem tão cedo cessaria de se repetir nos meus pensamentos.

Ela apagou o cigarro na calçada, antes de se levantar. Piscou pra mim e pela primeira vez aquela piscada era um corte. Pela primeira vez, cada linha era um corte. Eu sentia, ou sabia, nunca dá pra saber qual é o melhor verbo nessas situações.

Fiquei vendo ela se afastar com todo seu rebolado esplendoroso. O que antes eram puro tesão e madrugadas de dopamina deixou somente a dor da consonância.

Mirna tinha razão. A distância nunca foi física. E o gosto da culpa ia demorar a se dissolver no meu palato ainda por muito tempo. Mas eu simplesmente não podia.

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