Todo artista tem algum nível de sacrifício em prol de sua arte. Vide o amplo rol de filmes que transformam o autoflagelo em heroísmo, tornando a arte algoz de seus eleitos. O contraponto da nossa ferida aberta não se retrai: todo artista tem algum nível de pecado a que se permite em prol de sua arte.
Talvez o feeling indefinível da arte resida justamente nesse castelo de cartas em que abnegação e egoísmo se apoiam disputando o equilíbrio.
Também eu tenho minha via crucis e meus tropeços.
Entre carrascos literais e simbólicos que permeiam o fel cotidiano necessário a todo artista, meu pecado arrasta correntes e desestabiliza as luzes do apartamento. O meu pecado é ela. Eu preciso dela pra escrever. Pra alcançar aquele estado de espírito inflamado que nada no limiar em que criatividade e dor são indistinguíveis.
E preciso dela assim, do jeito que é, nublada, esporádica, transitória, fugidia. Nos holofotes do proscênio, mal iluminada. Sinuosa silhueta.
Não é simples ter discernimento sobre textos inspirados quando envolvem tesão desenfreado de banheiros de boates de quinta e de estacionamentos ao ar livre no centro da cidade.
Não é simples ter discernimento sobre textos inspirados quando envolvem paixões sufocadas em drogas baratas de final de semana e em febres emocionais de óbvia baixa imunidade decorrente.
Quando a realidade é útil pra virar ficção, ela própria precisa ser ficcional, tangenciar as fronteiras dos acontecimentos, distorcer deliberadamente a memória.
Que me perdoem meus amores reais, meus crédulos leitores, minha esquizofrenia entre expor e sentir. Que me perdoe, principalmente, ela. Mas na simbiose que somos talvez ela entenda, e até aprecie, que não a deixo porque não posso.
E, se em nome da arte pecar é louvável, a heresia é autorizada. Pelo menos assim me escuso, entre linhas explicitamente dedicadas, buquês de rosas não entregues em aniversários e músicas de cuja interpretação me aposso olhando pro teto.
Termino o texto. Caderno entre os lençóis com meus garranchos que questionam o entendimento, caneta pousada no criado-mudo, janela suada, cheiros dissonantes. Acendo um cigarro.
Most of all, I just don't, I just don't want to be free, no.
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