18.7.18

Veja bem, meu bem

Tinha acordado de mau humor, o padrão de todos os dias. O que aliviava era que precisava dar aula. Não exatamente aliviava, mas pelas duas horas em que eu precisaria forjar sorrisos e animação, talvez a máscara se tornasse real.

Sou professora de dança do ventre em uma academia que fica do outro lado da cidade. Como sou nova na equipe, acabei pegando aquelas turmas em dias e horários esdrúxulos, que ninguém, com um pouco mais de status e poder de decisão, pegaria, tipo nem fodendo.

Estava com uma dor de cabeça safada, daquele tipo que prenuncia período menstrual, que te deixa meio molenga, meio insossa. Mais do já costumo ser no dia a dia. A aula de hoje? Sexta, às 20h.
Um amigo meu costuma falar que aula sexta às 20h não é trabalho, mas teste de resistência, e ele tem toda a razão. Principalmente considerando a distância, o trânsito zoado, eu sem carro e a obrigação de felicidade fazendo com que um compromisso nesse horário sempre frustre meus planos.

Estava quase no final da segunda aula quando ouço alguém bater na porta. Por padrão da academia, não deixamos as alunas fazerem a aula depois de certo tempo de atraso, por questões de aquecimento e coisas do tipo, mas atender à porta era o mínimo, mais ainda àquela hora; nem que fosse pra compartilhar um papo rápido sobre algum cara de aplicativos de relacionamentos ou sobre a partícula de Deus, eu estava sempre aberta ao que viesse.

Faltavam exatos quatro minutos para terminar a aula, e eu divagando que talvez fosse alguém da recepção querendo nos adiantar pra poder fechar a academia.

Errei em todas as suposições. Não era aluna atrasada, nem funcionário apressado. Era ele. Tarcísio.

Ele sabia onde eu trabalhava, tinha me buscado algumas vezes, inclusive, mas já fazia tempo e eu. As alunas riram atrás de mim, e então notei que o que era tão natural pra nós dois, não era assim tão comum fora de eventos específicos na cidade. Tarcísio estava vestido de mulher.

Usava um vestido preto de mangas curtas, um pouco acima do joelho, solto, e estava maquiado, blush, lápis de olho, rímel, sombra, batom escuro forte... e calçava coturno. Ri da combinação, da cena, do contexto, das meninas na sala, de imaginar a reação do pessoal da academia vendo ele daquele jeito, sério, cara fechada, como se passasse despercebido, o que deixava tudo melhor.

Ri pra mim mesma. Aparecer ali daquele jeito eram entrelinhas que só nós dois sabíamos. Não só pelo meu fetiche em ver ele daquela maneira, mas pela forma como nos conhecemos.

Tarcísio estava fazendo um show de drag queen, e eu ia me apresentar com uma espada e candelabros logo depois. O show foi muito bem-feito, ri a ponto de chorar e borrar minha maquiagem duas vezes. Passou por mim rápido, cumprimentei e ele não respondeu, a típica cara fechada, parecia viver em um mundo só dele. Não havia muito tempo pra educação, de todo jeito, entrei em seguida e dancei, as medalhas na barra da minha saia marcando o tempo.

Eu ficava tão imbuída da dança quando me apresentava, que não via nem prestava atenção em mais nada. Nem reparei que ele tinha largado a descaracterização no meio, sem peruca, só com a touca de meia-calça na cabeça, maquiagem meio tirada, e estava me assistindo. Mas não da coxia, como eu tinha feito, ele tinha descido e estava na plateia, no canto do palco, do lado do bar.

Eu o vi assim que levantei a cabeça, depois de me abaixar para agradecer ao público. Comia qualquer coisa indecifrável e me olhava. Vi a maquiagem mal tirada e sorri de forma automática, ele não sorriu de volta. Entrou no camarim logo depois de mim, falou que eu dançava bem, que a música parecia sair do meu corpo. Eu tinha coreografado praquela noite uma música com derbak marcado, que dá esse efeito. Trocamos contato e combinamos de almoçar juntos no outro dia.

Seria praticamente um almoço de negócios, troca de contatos sobre produtoras e eventos na cidade. E eu achava que, como a maioria dos homens que fazem show de drag, ele fosse gay. Eu ainda não tinha exatamente me interessado por ele nesse sentido, tinha ficado meio naquele limbo de quando você simplesmente "não vê a pessoa assim".

E talvez tenham sido os assuntos envolvendo Rubem Alves ou ele ter pedido tiramisù de sobremesa. Ou talvez tudo isso ou talvez nada disso, sou adepta da teoria do "essas coisas não se explicam".

Talvez tenha sido a forma como apareceu. De calça jeans, óculos, cabelos - que só agora descobri que eram compridos - bem presos em um rabo de cavalo baixo, roupa de cores neutras. Seria irreconhecível sem a caracterização berrante e os gigantescos cílios postiços se a cara fechada não fosse a mesma. Me veio uma sensação de que reconheceria aquela expressão sisuda até debaixo de uma burca, e estranhei. Tinha conhecido o cara no dia anterior e era a primeira vez de fato que conversávamos.

A partir desse dia, houve várias outras vezes. Eram almoços neutros com conversas majoritariamente sobre trabalho, e em tudo ele me deixava completamente encantada. Eu realmente não tinha percebido aquele encantamento de um outro jeito, pra mim era admiração, até que.

Bom, todos na boate perceberam que passamos a ter um bom entrosamento, e o gerente certo dia nos sugeriu uma dança conjunta, um tango. Ele sabia que eu já tinha passeado pela dança de salão nos tempos da graduação e era também coreógrafa. Tarcísio conseguia fazer qualquer coisa, foram as exatas palavras que disse. Eu não tinha a menor dúvida, era exatamente essa a sensação que ele emanava.

Quem já coreografou a dois sabe que acontece toda sorte de situação constrangedora, mão naquilo, aquilo na mão, uma peça de roupa que escapa, e daí pra pior. Ele sempre foi profissional, por mais que estivéssemos virando amigos, ou o que quer que fosse do gênero.

Foi em um gancho, ele estava com o braço enrolado na minha cintura, e então me dei conta. Meu coração trancou no peito. Tudo em volta parou quando eu percebi pela primeira vez cada detalhe do rosto dele. Demorei a notar que olhava fixamente pra sua boca. Só percebi quando ele me beijou, me tirou daquele transe, me transportou pra um universo paralelo. Milênios e civilizações se passaram, três segundos depois, ele continuou a coreografia, como se nada tivesse acontecido. Eu estava completamente perturbada.

O dia seguinte era quarta-feira, tínhamos almoçado juntos todas as quartas nos últimos meses, aquela não foi diferente. Tarcísio continuou agindo como se nada tivesse acontecido, tentei responder da mesma maneira, embora dificilmente eu tenha conseguido. Já tinha percebido que estava apaixonada, e isso fez com que eu ficasse um pouco sem graça e boba perto dele, perdendo um pouco da naturalidade que tínhamos.

Várias semanas se passaram assim, entre ensaios e almoços, meses, talvez, eu parei de conseguir precisar o tempo desde então.

Eu sabia que ele não morava exatamente perto de mim, e não queria forçar uma barra nem parecer inventar uma desculpa pra passar uma cantada. Ele era mistério e trabalhávamos juntos, porra, o ideal era eu ficar na minha. Mas sempre tem aqueles dias que os poréns se misturam aos foda-ses, e em um desses eu o chamei pra tomar um vinho na minha casa. Sem oi, tudo bom, sem emoji, era só isso.

"Tinto ou seco? Eu levo." Foi a resposta. O nervoso do prenúncio de foda me fez dar uma gargalhada, e travei uma guerra comigo mesma pra não desistir. Foi um pouco de "por que nunca fizemos isso antes" com "parece que sempre fizemos isso".

Ele sumiu por oito dias depois disso.

Nem na boate apareceu. O ego ferido foi o menor dos problemas perto da minha mente mirabolante que me fez pensar que o cara tivesse DST ou fosse necrófilo. Talvez ambos. Talvez algo pior, que eu sequer pudesse imaginar.

Exatos oito dias depois, meu celular toca. "Se puder ir pra algum meio do nada: olha pro céu. Nunca vi tão estrelado." Gelei com aquele ressurgimento um tanto dissimulado. E ignorei.

Mas nem meu ego ferido conseguiu me impedir de rir da nossa sintonia. Óbvio que eu tinha visto o
céu. Eu estava vendo naquele momento. Em dias que preciso pôr pensamentos em ordem subo para o terraço do prédio pra ver o céu. O que talvez seja proibido. Mas o benefício da dúvida me protegia. Era só isso, ficar deitada olhando o céu, deixando a mente escorrer pela cidade.

Não, eu não respondi a mensagem. Encontrei Tarcísio dois dias depois, cheguei na boate pra dançar,
não era dia dele, era só meu, mas ele estava lá. Ele tinha ido dar um workshop fora do país, Berlim, talvez, chute mais óbvio, não me lembro, saiu frivolamente em algum assunto.

Aparentemente, todos na boate sabiam. Todos na boate sabiam menos eu. Por que me deixaram ir ensaiar e ficar esperando ele? Merda. Fiquei vulnerável. Geralmente isso é um caminho sem volta.

Ouvi meu orgulho durante poucos dias e logo nossa rotina voltou ao normal. Apresentações e almoços, e agora também tinha sexo. Em algumas (muitas) vezes, transávamos logo depois do show, com ele vestido de mulher. Isso condicionou um hábito, era um tipo de código. Eu pedia ou ele me recebia/aparecia assim, fora dos shows. Especialmente se não "estivéssemos muito bem", o que quer que isso significasse.

Aquilo nele me dava um tesão fora do normal, ele sabia. Teve a vez que ele me esperou com uma das minhas roupas de dança do ventre, maquiagem carregada. Eu tinha deixado na casa dele depois de algum dos shows, eu acho.

O corte lacaniano se deu quando aceitei um trabalho temporário em outro estado. Eu destaquei o temporário; ele, o outro estado. Me disse que tinha recusado coisas do tipo por minha causa, que eu nunca soube, veio cheio de acusações e veias saltadas.

Me senti mal, mas não o suficiente para não ir. Sempre achei que o que éramos, o que quer que fosse, permitiria esse tipo de atitude, que haveria incentivo mútuo e essa coisa toda.

Dessa vez foi o ego dele que rompeu comigo. Não por muito tempo, também. Arranjávamos nossas brechas enquanto fiquei fora, e continuamos quando voltei. Mas as coisas não estavam mais do mesmo jeito. Os almoços e o sexo disputavam por qual tinha se tornado mais esparso, nos víamos basicamente na boate, e nessa época já não tínhamos nenhuma apresentação juntos.

Tinha se passado um bom tempo até hoje, ele aparecer aqui desse jeito, deixando óbvio pra mim o que significava. É claro que nada precisava ser dito. Ir me buscar, uma sexta, vestido de mulher. Muitas imagens que pintavam um quadro óbvio. Era nossa bandeira branca.

E eu ri, mais uma vez. Ri pensando na ciranda dos relacionamentos. Ri pensando em como a vida é errada. Ou talvez ela seja certa, errados somos nós que não a conseguimos entender. Ri da injustiça dos desencontros. Ri dos desvios. Ri dos percalços. Ri das tréguas. Ri, em catarse e incredulidade, ri porque já não fazia a menor diferença pra mim. Eu já não sentia. E é alívio, mas não é por isso que é bom.

Ouso dizer que foi justamente essa certeza compartilhada que o fez aparecer lá daquele jeito. Aquele famoso tiro de misericórdia, a tábua de salvação de que falam. Saímos depois da minha aula. Era sexta, afinal. Mas não houve referências virando dopamina, mãos me deixando nua em tantos sentidos, músicas capciosas de dia seguinte. Aquela saída foi alegoria do que eu já tinha percebido.

Ele tinha saído de mim.

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