4.10.18

Rabelais e o desprezo pelo saber

Nem proscênio nem bastidores; da crítica das aparências à da estrutura, Gargântua é, em última instância, um deboche ao conhecimento.

Entre exageros declarados e comedimentos inerentes ao trato social, o óbvio desafio às grandes instituições regulamentadoras - família, igreja, estado, educação, moral, política etc. -  divide espaço com uma estética que descreve tempos ainda em ebulição: a insistência nos ditos contrastes, que, no fundo, expõem o mesmo.

São três grandes estruturas que dividem o livro, que, assim, segmentam a argumentação: a formação do gigante, as guerras, a abadia utópica. Em termos de forma, também elas têm as próprias características, seja o precursor do romance de formação, seja o flerte com a rapsódia. Ainda, configuram-se como um funil, a primeira parte é a maior; a última, a menor.

Assim, a própria forma de Gargântua recupera seu conteúdo. Caos sistematizado, ordem questionada. Opostos que brincam livremente entre seus terrenos.

Opostas também são as faces do conhecimento (entendido aqui em sentido lato, cultura, ciências, arte, linguagem etc.), constituinte e apartado. Tal qual o gigante, forma-se no seio de uma sociedade típica, sendo por ela alimentado, mas precisa instituir certo alheamento, responsável por legitimar seu lugar de autoridade.
O efeito lupa proporcionado pela posição do gigante também o identifica com o próprio saber. Enquanto o micro é esmiuçado, o geral se aparta, e possibilita que de tudo fale. Ainda assim, falho, pois o desfecho do funil do saber é sempre uma utopia, opondo-se à centelha de sua formação, em que tudo cai nessa grande boca. Ele não se resolve, finda-se em transitividade.

O conhecimento, essa besta-fera, é sempre o que se precisa domar, vê-se na contemporaneidade o gigante Hagrid, de J.K. Rowling, ou até matar, vê-se Golias, em prol da santa norma. Porque saber é aberração e pecado, bem digamos nós, condenados descendentes de Adão.

Internalizamos tanto a necessidade de se domar, amaciar e enjaular o gigante do saber, que a própria universidade, pretenso universo, esquiva-se claudicando entre determinadas linhas de pesquisa e normas da Capes, da ABNT, da só Deus sabe.

Rabelais despreza a linearidade que o alto saber pressupõe, bem como as supostas searas em que os saberes se apartam, juntando em um mesmo caldo história e medicina, narrativas e genealogias. E seu enciclopedismo, assim julgado por Bakhtin, revela certo deboche ao conhecimento e à futilidade de sua busca. Os eruditos detentores do saber terminam nadando em bocas de gigantes, perdidos entre a busca tão risível da seriedade. Afinal, por mais que partilhemos sofisticadas ironias sobre o sentido da vida em banquetes e tavernas, ainda peidamos.

Por último, pensando o gigante dentro da estética grotesca, ele é a desocultação da repressão animal em prol da pretensamente humana lógica de planilhas de Excel. Esses bons instintos, quando rotineiramente domados, que se sublimam em afazeres cotidianos. Assim, em última análise, o gigante também escancara feridas de interações humanas, constantemente maquiadas em guerras, identidade, religião, ativismo, futebol e churrascos de domingo regados a pagode.

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