12.9.20

Ausência

Hoje acordei e pensei em escrever a verdade pra você. Mas não aquele você que finjo existir nos meus medos de me ver sozinha em plena noite de sábado ou domingo, sem ter um abraço pro qual recorrer – ainda que o seu nunca esteja lá.

Não aquele você que traz comida pra nossa casa, ato que tento endeusar como se fosse algo além de manter a existência – ainda que a seu lado seja só subsistência. Não aquele você cuja rotina é tão funcional quanto é patética e repetitiva, com aquele sexo que me faz gemer de boca fechada – ainda que sejam gemidos falsos e que eu quisesse dar gritos como uma puta que não posso ser contigo.

Não, não esse você.

Escrevo pra esse você um pouco mais de verdade, esse você que faz com que minhas reclamações caiam em ouvidos surdos e que só se abrem quando ouvem a possibilidade da separação, significante que demarca muito mais seu fracasso do que minha partida – e ainda tenho que ouvir que teu medo real é desapontar tua mamãe, seu ridículo. Escrevo pra esse você que não me vê e que não faz ideia de como já gozei com a boca de outro enquanto estava contigo – e lá pude gemer como nunca, pude perder a noção do tempo, pude esquecer quem era. Escrevo para esse você do qual tripudio comemorando teu aniversário com o bolo preferido que é meu porque tua preferência me é absolutamente indiferente – ao mesmo passo que, a do outro, faço cestas de compras pra tentar acertar.

E escrevo para confessar. “O quê?”, te perguntas, e aqui te adivinho porque te sei simplório e previsível. Confessar não que eu tenho outro ou que outro me tem. Isso não se confessa pra quem sequer consegue vislumbrar no olho do outro o amor que nunca esteve presente consigo. Escrevo para te confessar que não me importo.

Não me importo de te ver aqui, agora, à minha frente, súplice, pedindo, implorando que não saia do teu lado nesse que pode ser teu último suspiro; não me importo que creias que vás para o inferno ou para o céu se me vires pela última vez; não me importo que o ar que sai das tuas ventas seja o último, tampouco me importo com como tua mão tenta tocar meu rosto como uma criança tenta tocar seu brinquedo ou seus pais. Sempre fui invisível para ti e agora queres me ver, queres me ter pela primeira vez diante dos olhos como se, de repente, o fechar eterno dos olhos tivesse dado conta de abrir fendas lá onde mesmo tinha apenas traves. Não me importa.

Prova disso é que faço questão de desfilar aqui momentos que não me viu. Naquele dia que deveria chegar bela e arrumada – estava a me fazer outra mulher no salão, afinal – cheguei apenas um caco, cansada, exaurida, mas plena de gozo e feliz porque tive minha real festa na casa de outro, o presente pela completude de um ciclo de existência sendo ser provada como nunca dantes o fui por você. Você sequer me perguntou o que houve, não precisei sequer mentir, não precisei de nada além de estar ali.

E ainda que na foto esteja evidente que o que tenho é apenas sono, você nada fez, apenas disse “beleza”. Naquele dia em que fui buscar uma receita médica e demorei muito mais do que o tempo necessário porque estava presa num encaixe perfeito com o corpo de outro, vendo como meus peitos cabiam na mão dele com facilidade ou sentindo o calor do amor dele, você não viu nada. Sorriu e apenas me disse “tranquilo”. E teve também as milhares de vezes em que fui à casa da minha família, não aquela de sangue, mas aquela que se forja no gozo eterno de dois corpos que bailam em sintonia ao som de um ritmo que é um nós, aquela que advém do delírio báquico que embriaga e imerge um corpo no outro, aquela mesma que vem daquilo que a gente tenta chamar de amor, mas que as palavras ficam sempre aquém. Você sabia perfeitamente bem que lá pouco me demoro, que não há trânsito como disse, que rapidamente poderia voltar. Ouvia de você apenas um “sem problemas”.
Beleza. Tranquilo. Sem problemas. Quantas formas diferentes de me dizer não ligo.

Pois se quando não me transformo quando deveria está tudo beleza, quando não volto quando deveria voltar está tudo tranquilo e quando minto está tudo sem problemas, não me importo nem um pouco de, agora que me imploras por minha presença, deixar-te essa carta e me fazer presente pela ausência. Talvez me lendo antes de morrer nessa cama de hospital, tão frágil e ridículo como foste em vida, consigas, finalmente, me ver. E eu, meu caro, estarei gritando de prazer, abraçada com um homem que quando me vê faz com que eu queira, pra sempre, existir. Considere isso minha coerência: quem sempre viveu cego não poderia deixar de morrer na escuridão.

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Escrito por Uriel Nascimento.

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