18.10.20

Espera

(ela se deita na cama, coloca essa música pra tocar)

Lembro que falei de você antes de dormir. Falei, hahaha, isso dá muito a impressão de que escolhi e desde aquele dia não tenho escolhido muitas coisas salvo fugir de você. Eu não sei do que eu fujo. Se é do jeito que me olha de cima e parece me ver toda; se é do toque e do cheiro da tua pele, que ficam em mim até o dia seguinte; se é do som da tua voz que reverbera e não deixa nenhuma palavra ficar, só o eco do meu próprio desejo... não sei. O que eu sei é que me dá medo estar perto assim. Clichê demais, eu sei. Pareço uma porra duma princesinha ridícula do século XXI pedindo pra ser salva dum monstro que nem existe - ou, pior, é ela mesma. 

Mas não é isso. Não quero salvação, não quero além. Quero o terreno. Que esse toque estranho que me faz não saber mais o que é meu corpo e o que é o teu. Quero esse jogo um pouco ridículo, um pouco divertido que é me insinuar e fugir e te ver vir atrás. Quero a tua promessa do impossível, do eterno e de tudo o que a gente chamou de religião - e é isso o teu corpo no meu, afinal. 

É a vertigem sagrada das palavras que me sussurram estranhas, o roçar da língua, o descortinar. Estranho porque não traz como condição só o remoto e inesperado, mas o indesejado. O chão irregular, que me faz tatear um solo que me foge dos pés.

Quero o terreno nivelado, com aquelas cercas brancas pras quais sempre torci o nariz em deboche. O terreno das certezas, daquela certeza de que eu não preciso fugir, de que eu não preciso ir embora fingindo que eu não me importo pra me manter segura, que segurança, como se entende, passou a ser o oposto. Que eu posso destrancar os muros, demitir os guardas, me mostrar pra você sem o tortuoso típico dessas trincheiras. Estilhaçar todos os vidros blindados que ergui à minha volta só quando, dentro de mim, eu permitir ricochetear o teu nome.

"O que me separa dessa segurança?", você me pergunta incrédulo, a segurança sendo o sonho de todo amante que já visitaste. É que a segurança é permanente e permanência é espera. Não sou de esperar, faço eu mesma. Verto o estranho pra minha língua, faço histórias terem um corpo, corrijo os erros dos que querem dizer, mas não sabem. Esperar o outro é um exercício difícil, sendo assim. Não porque precise paciência, isso é o menor dos males e ser mulher é ser forçada de pequena a esse lugar; mas porque a espera do que se quer é o possível prelúdio de perder e a perda, querendo tanto assim, me destruiria. Por isso prefiro eu mesma jogar fora, ao menos fui eu mesma quem fiz, o outro não participa e com isso sigo praqueles homens que não me verão e que, justo por isso, seguirão encantados pela própria fantasia que eu encarno. 

Mas não dessa vez. Dessa vez algo quer falar, algo foi um pouco além do que eu me permito normalmente. Acho que foi a distância, a tranquilidade com a qual você lida com minha ausência e me faz, por isso mesmo, querer estar presente. Sabe, eu nunca quis ser precisa: prefiro o erro consciente, a conta que não fecha, o tesão que não acaba naquele gozo que o corpo enfraquece… No fundo eu sempre quis ser desejada e isso é algo impossível quando você não é mais do que o resto de uma divisão que não bate. Contigo nós dois somos fração e isso já me muda de lugar, nunca soube não ser vista como inteira, essa falta que eu tento disfarçar bem - e geralmente funciona - passa despercebida. E são nesses microssegundos que a voz capta tão rápido quanto se desvanece que a gente se percebe e se encosta; isso te excita; isso me enlaça.

É um enlace perigoso. Porque enlaça quem eu sou, enlaça o que eu acredito, enlaça meu trabalho, enlaça a marca de café que eu mais gosto, enlaça os móveis da minha casa. Enlaça o meu desejo. E enlaça com a percepção peculiar da vida, com o interrogatório acidental, com o escrutínio do mundo, com o distanciamento e com a proximidade, com o ponto de articulação em lugares improváveis do palato, com a temperatura da boca, com a pressão dos dedos. Com os rastros que deixam no meu corpo da mistura indistinguível de lembranças e desejos.

Esse solilóquio a que me rendo, que me ouvem e debocham de mim as paredes monótonas da minha casa, nunca seria, se esbarrasse contigo em alguma esquina que você cruzou desavisado em uma tarde de clima equilibrado, uma surpresa, como se pretendeu quando foi fabricado dentro das minhas certezas de quem sempre soube o que fazer, o que dizer. De quem sempre leu tudo fácil, beirando ao tédio e ao desprezo pela obviedade de tudo e de todos. De quem prevê a tudo e a todos, ainda mais fácil. Agora, não. Você, não. Você já sabe. Cada uma dessas vírgulas já lhe são sabidas. Todas elas saltam e fazem malabarismos na sua frente quando não contenho o maldito sorriso se desgarrando do meu controle e rasgando as minhas bochechas só porque eu te vi. Você sabe em todos os meus detalhes. Você sabe quando encho o peito e a minha respiração muda. Você sabe quando o tom da minha voz se encorpa. Você sabe quando desvio o rosto, despudorada que sou, tímida pelos olhos que me colocam holofotes. Você sabe quando a minha frequência se altera. Porque é você que causa essa minha sizígia.

Você só não sabe que devia estar agora na minha cama.


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Escrito em parceria com Uriel Nascimento.

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