28.10.20

Quadrilha

"Ainda vamos sair hoje?"

Vi a notificação no celular. Tocava algum pagode lado B, daqueles que provavelmente só eu e o produtor conhecemos, os próprios intérpretes mal se lembram de ter gravado.

Olhei a mensagem de novo. O pagode deu lugar a uma ladainha outra:

João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.

Sem vírgula, claro, esse trem descarrilado é impossível de conter.

Eu tinha caído naquele limbo dos quasi encontros. Quando você perde o controle e aí já sabe que é só ladeira abaixo. Vocês se falam empolgados, ele deixa um chocolatinho na sua portaria só porque é terça-feira, mas você já sabe que você perdeu. Você cedeu, afinal.

Eu. Eu cedi. Sem nenhuma impessoalidade, e toda a responsabilidade pesando nos ombros a ponto de entortar a postura cultivada a balé, yoga e quiropraxia.

Logo eu, que sempre leio tudo e todos, o próprio Megazord Jean Gray-João Bidu-Mãe Diná-Chico Xavier tupiniquim.

Com ele, não. Ele era mistério. Me perguntava se dessa vez eu tinha errado pelo excesso ou pela falta. A segunda opção, suspeitava, mais típico.

O problema das pessoas que sentem tudo e sufocam tudo e mais um pouco, impassíveis, anestesiadas.

A suposta analgia de quem precisou aprender a trancar a ebulição do centro da Terra no peito. E sorrir com brilho no olho como se nunca tivesse sentido a profunda ferida latejando no fundo de si mesmo ao se identificar com essas filosofias que dizem ser do "pessimismo", dos "sentimentos noturnos" e outras palavras que embelezam o fedor repulsivo dos respingos de sangue no tapete da sala.

A mensagem ficou lá, sem resposta.

Eu, estática, encarando a mensagem, o aplicativo de música intermitente, o e-mail com as mil solicitações do meu chefe. Fazendo de tudo pra não encarar o óbvio, a mim mesma, embora meus sorrisos - a ilusória ferida narcísica - me encarassem de absolutamente todos os cantos da casa. Me inquirindo, eu sei.

Em mim, corria ele. O outro ele, claro, não o ele da mensagem, nunca seria esse ele.

Tudo o que eu sentia por ele, esse ele, um Ele até, o do chocolatinho na portaria, me impedia até de me mexer. Às vezes parecia que a própria respiração se estrangularia no meio do caminho.

Como se pode sentir tanto em tão pouco?

Sim, eu sei a resposta psicanalítica. Mas ela é só uma observação de um fato, um construto teórico. Ela não justifica, tampouco expõe, minimamente esses caminhos. Até ela é incapaz perante ao pathos das paixões, veja só.

A química, coitada, claro que não, também. Todas as teorias correm atrás do rabo umas das outras na mesma quadrilha dos nossos sentimentos, nos enredando cada vez mais nessa armadilha de dedo.

Dizem que o segredo da fuga (a fuga real, não a de nós, evitativos) é relaxar. Que seja.

Respondo a mensagem, a educação empurra meus dedos retesados: Claro que ainda vamos sair hoje! Te encontro lá, na mesma curva do vento, naquela em que todas as paixões avassaladoras conseguem encontrar o retorno.

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