25.11.20

A falta

É claro que eu também tenho sentimentos por você. Respondo em voz alta, sozinho no meu quarto, já pela milésima quanta vez escutando tua voz naquela mensagem.

Olho a parede, o armário, a rua pela janela do andar baixo, ouço de algum lugar a música que toca falando comigo: Mas correr atrás já é demais. Evito o meu reflexo no vidro.

Nunca foi falta de sentimento, pelo contrário, foi excesso. Sabe quando você molha os pés no mar e sente que a correnteza vai te puxar se você não sair logo?

Eu também fiquei paralisado de ver tudo acontecendo tão fácil e tão rápido entre a gente. Sim, eu também senti pavor, como você mesma comentou sobre você.

Entenda, minha querida, todo mundo tem as suas dores, mas eu não posso me dar ao luxo de dar um passo em falso.

Porque eu não teria onde me agarrar se a queda fosse ainda maior do que já tem sido; se esse chão, instável, sumisse por completo e eu tivesse que encarar o abismo sem nenhuma corda de reserva.

Não é que eu não queira, que eu lhe tenha virado as costas, ido embora, desistido, como você escolheu pensar. Seria bem mais fácil se eu realmente tivesse feito isso; mas eu não fiz, nem conseguiria fazer agora.

23.11.20

Bagunça minha vida, revira minha cama

Quarta-feira, na fila do mercado, passa alguém atrás de mim com o cheiro dos seus cabelos, e chego a sentir eles enroscados entre os meus dedos e você reclamando que eu te deixo toda desarrumada.

E me vem seu jeito de entrar na minha e de falar "passa vontade não" em resposta às minhas cantadas infames. E o quanto eu gosto de tudo isso em você.

O jeito de menear a cabeça revelando a linha tênue entre desprendimento e timidez quando te chamo de mijona e quando cheiro seu suvaco do nada. E você séria querendo me convencer do alto nível de rusticidade da sua academia.

Você evasiva fingindo que não tá levando nada a sério, mas sem parar de analisar cada detalhe. Fazendo piada em parte porque é sua defesa natural, em parte porque é um teste comigo, mas ainda assim, comigo, estando entregue.

Etéreo

Hoje eu pensei em dizer que te amo.

Mas claro que não seria um "eu te amo" vulgar, desses que substituem o fático bom dia na frieza dos smartphones.

Muito menos mais um eu te amo enviesado como indireta, que nem sei se você vai ver.

Um eu te amo com grandes atos, declarações públicas rasgando o peito, muito menos. Nunca foi assim que se disse o amor.

21.11.20

Feeling

Nós dois fomos uma comédia romântica bem clichê desde o começo.

Eu só fui perguntar se você podia tirar o carro que tava travando a minha saída, e seu jeito espontâneo, dizendo que tem uma camisa igual a minha e que eu morar com a minha mãe é inaceitável, acabou comigo.

E só pensava onde caralhos eu tava me metendo, mas não me culpe por isso. Te ver cantando "Lua de Cristal", invadindo o palco daquela banda, em um inferninho de quinta, não ajudou muito.

E, repare a ironia, foi exatamente ali que eu soube que tava fodido.

19.11.20

Pontas soltas

Ouvia Lenine. Paciência, é claro.

Paciência era tudo o que não tinha escrevendo aquele texto. Despejou tudo que sentia, tudo sobre ela, tudo sobre eles, não dando margem nenhuma para interpretações, só faltava encaminhar junto o nome todo do sujeito e uma foto. 

Como achou que postar o texto no blog público e em todas as suas redes sociais de influencer era pouco, enviou para ele. Perturbada pela enxurrada de sentimentos, a mensagem que acompanhava o texto era simples: "Me desculpe se for inadequado, mas eu precisava".

E daí? Se ela precisa ou não, o problema é dela, não dele. Como alguém pode pedir desculpa pelo que não se arrepende? Se pretendia lógica, direta, objetiva, se gabava disso. Mas era um emaranhado de fios. Agora, também das pontas soltas que eles haviam deixado.

Culpava os sentimentos pelo desequilíbrio. E talvez mesmo culpa deles fosse.

Viu que ele ficou online no WhatsApp e gelou, os dois certinhos ficaram azuis no ato, a garganta mais seca que três livros do Graciliano juntos.

"Um pouco mais de paciência", clamava Lenine já, pela quantidade de vezes que esfolara a mesma música, como se aquilo pudesse alterar qualquer coisa dentro dela.

Não, não podia. Nada podia. Então adotou o clássico pensamento de "o que é um peido pra quem já tá cagado", o melhor arrimo de quem quer enfiar o pé na jaca, seguido de "só se vive uma vez" e todos os similares.

Foi até a casa dele, saiu de rompante. Disse para si mesma que "parecia que algo a empurrava", como se houvesse qualquer força alheia lhe dando sinal. Mentira, a força mística que chacoalha desse jeito é interna e mais simples: a pura vontade.

Deu o nome na portaria e já começou a se sentir inadequada, mais, quando o porteiro pediu "sobrenome ou referência". Tudo bem que tinha um nome comum, mas, sério? Falou um "deixa pra lá" se virando, segurando a marejada que o olho deu entre tristeza, mágoa e raiva - de si mesma -, quando ouviu o porteiro assentir e dizer que ela podia subir.

10.11.20

Oroboro

Acabei com o quinto maço de cigarro só hoje.

Eu tô o próprio Bukowski, bebendo até endireitar a diplopia, fumando até não ter mais o que improvisar como cinzeiro e escrevendo compulsivamente.

Desisti dos copos, que há muito transbordam as guimbas, e repouso a garrafa prendendo os papéis que de bom grado acolhem os meus garranchos fugindo das linhas.

Não são só essas três coisas, é claro, ou elas nem teriam propósito de existir. 

Tem a anterior a todas elas, minha fonte e minha causa: você.

E é esse pensamento em você, invasivo como a pontada contínua da enxaqueca, que me prende nesse ciclo de evitação: te bebo, te fumo, te escrevo; te engulo, te trago, te teço; te mastigo, te sugo, te metonimo.

Eu te forjo em grafite e celulose.

E forjo que me descem pela garganta tuas torrentes, forjo que me adentram os pulmões teus odores de zênite, forjo que alteram a química do meu corpo todos os teus malabarismos, a ponto de se materializarem no papel.

E ali, tão tangível o etéreo, a impossibilidade de você me retalha o espírito. Então eu dou mais um gole, e batalham os pulmões contra a tentativa de analgesia.

9.11.20

Pular no precipício é mais fácil do que aguardar o toque

O golpe de sorte e a vista pra rua principal, e essa arma apontada pra mim.

Desestabilizada como você me deixou, eu mesma puxei rápido o gatilho, com medo de que você acabasse fazendo.

Como meu pensamento, tão insistente, não te sacode, não te estapeia, não te suga direto pro meio das minhas pernas?

Vejo a fumaça se desfazendo e entendo. Também meu pensamento se dissolve um segundo antes de te tocar e no meu peito jaz pesado, como os resíduos pegajosos do alcatrão.

Canto você a plenos pulmões. A sua língua, que deveria estar se embolando na minha. Os seus sons, que deveriam estar me arrepiando ao pé do ouvido.

8.11.20

Portas abertas

Ouço aquela música, a nossa música. Não tão longe, no centro da cidade, você faz o mesmo.

Você relê todas as nossas mensagens, buscando brechas pra se convencer do não, coisa que duvido que tenha conseguido fazer.

Eu vasculho cada detalhe das nossas memórias, buscando motivos pra acreditar no sim.

Você realmente duvida de que nós dois somos o presente perfeito do destino? Porque eu não.