21.1.21

Coisa de pele

Se quer mesmo saber, teu cheiro ainda está aqui, canta Theodoro Nagô revolvendo lembranças que ainda exalam da pele.

Exalam do ar do apartamento de fundos, exalam do colchão já nostálgico, exalam dos meus poros irreplegíveis. E não falo do cheiro do teu perfume, embora igualmente penetrante, mas da tua pele. Teu cheiro fazendo precipitar no meu palato também o teu gosto.

Me desce queimando a garganta e me preenche, como se de alheio e intruso tivesse então se mesclado, correndo sinapses e riscando a pele por dentro, constitutivo.

Acendo o incenso forte, medito buscando direcionar a mente, o caminho natural e óbvio.

Não hoje.

Hoje me distrai fácil a atmosfera de você.

Consolação - eu, inconsolável

A luz da Lua se apossa do meu quarto como se me convocasse para qualquer coisa longe daqui, das obrigações da realidade.

Olho seu charme minguante, fio de quem se esvai, pairando na direção da Consolação. Olho o relógio da Paulista da minha janela, essa linha reta que leva ao teu bairro e ao mesmo tempo me mostra o quanto conexão é relativo. Olho a Consolação, a mira óbvia, como se isso fosse um tipo de sinal que te materializaria agora, nos meus braços, mãos cravando minha pele, respiração pesada, gemido vacilante, prensando a bunda contra o meu pau dizendo que é minha.

As nuvens desenham finas um chão de deserto no céu. E penso nesses desertos de alma que ficamos nós dois desde que você decidiu que eu te dei um corte, que eu fui embora, que eu não te levei a sério.

As nuvens ralas que não conseguem esconder a Lua são a alegoria da minha paciência. Talvez fosse mais relevante se sequer existisse. Vontade de te sacudir, de te sequestrar, de te botar uma aliança no dedo e te dar meu sobrenome. Filhos com nomes em outras línguas, vidas de origens gritantes se alinhando com a cola do nosso sentimento.

16.1.21

Olhos de tempestade

C - G - Am - F (dedilhado)

Respingos na janela do meu quarto
Chovem seu cheiro, seus ares
E as nuvens carregadas com seus rastros
Mudam meus mares

Danço entre seus raios na cidade
Solista das suas pupilas
Me acham os olhos de tempestade
Devastam minhas vilas

10.1.21

Esquiza

Divisa. Cindida por escolha. Nunca conseguiu ser diagnosticada, nem para isso ela serviu. Era consciente demais para ser capaz de qualquer coisa, e ser feliz e bem recebido no mundo demanda certa dose de ignorância. Mesmo como pária. Até com essa linha ela já nascera cruzada. 

Era insuportável ver o mundo por qualquer lente outra que não a da diplopia. Tamanha conversão tornara sua visão física também assim. Estrábica.

Precisava fantasiar.

Precisava em sua mente trajar os caixas de supermercados de Oompa Loompas e, assim, como aprendeu a criar, aprendeu, do mesmo jeito, a se deleitar com o cotidiano. Com as cenas com que travestia a realidade.

Às vezes se permitia ser envolvida pelo afeto dessas criações. Um afeto que para ela nunca existiu fora de seus devaneios. De nada. De ninguém. De lugar nenhum. De nada adiantavam suas incessantes andanças pelo mundo, nenhum lugar para ela estava lá. Eram todos bolhas de sabão. Por mais que fossem bonitos de admirar por alguns momentos, eram frágeis, fugazes, irreais. Reflexos e refrações. Ilusões.

8.1.21

Amores vêm e vão, você fica

Dez anos atrás, uma versão minha ouvia no talo dia e noite aquele sofrido "Não aprendi dizer adeus", de Leandro e Leonardo.

Eu tinha muitas coisas pra dizer, que viraram livro, que viraram música, e ainda assim foi tudo insuficiente. Até porque, frente a frente, calei. Como calei frente ao teu "E a gente?". Como calei no meu falso - tentativa de superioridade aplacando a vulnerabilidade das coisas que a gente não suporta, sentimento que você bem conhece - "Não somos um casal". 

E teu olhar, me encarando (os olhos profundamente inquiridores de "por que não?", de que tanto falo), me encharcou de perplexidade, batendo a pontada de esperança dos "E se". Eu me odiei por, naquele segundo, desejar.

Eu chorei. Mas não agora. Foi minha outra eu. Chorei sozinha quando podia, em toda oportunidade. Chorei no meio da rua quando era impossível conter. Chorei depois de dar chance a outras pessoas (é possível dar chance real a alguém nessas situações?) e só se avolumar o vazio de você.

1.1.21

Nada

0h18 param fogos e gritos, e aquele Feliz Ano-novo solitário pisca na tela do meu celular. Dias antes, você se oferecera pra me encontrar onde quer que fosse.

Desespero, pensei.

Em parte, por conhecer teus padrões, em parte, por conhecer os meus.

Dizem que a gente reproduz traumas afastando as pessoas como pode e se colocando como inamável.

Mas como pode se sempre busquei o oposto? Fiz caridade. Suportei procedimentos estéticos. Estudei as minúcias de todas as fórmulas do amor com que Leoni e Leo Jaime nunca se depararam.

Sabe Deus o quão fundo tive que enterrar sentimento a sentimento, pessoa a pessoa, a ponto de sequer putrefar, mas se dissolver no calor do centro da Terra. No calor inóspito do centro de mim. A eles sequer foi dada chance de recalque.

Fiz o impossível.