29.3.21

Cinco letras

Cai a água gelada nas costas, e a zanga espúria que sinto tem seu cheiro. Sentimento de cinco letras, como a folia que me brota no peito com o lembrete de que você usou o chuveiro antes de mim e mexeu na temperatura que deixo como padrão, sendo um pouco dono comigo do meu cotidiano.

E me preenche a alma ver tão palpável a nossa intimidade.

De poder deitar nu em pelo um do lado do outro sem compromisso de sexo, porque a gente pode desnudar nossa alma, e isso é que tem urgência.

De antecipar as piadas ruins um do outro, e ainda assim continuar achando graça delas.

De ter se tornado natural sem a gente se dar conta que não importa o que aconteça, o desfecho da noite e os dias seguintes são sempre compartilhados.

Também tem cinco letras mania, como todas as suas que me aquecem a rotina. A mania de reclamar que não desligo meu computador e que não tenho backup. A mania de pedir para ouvir os áudios alheios que ignoro - e de se incomodar por se ver tanto em tanto de mim. A mania de comer de colher e nem sequer usar como desculpa sua ascendência de outra cultura, porque você fica confortável com a sua esquisitice peculiar, que já se tornou meu porto também.

14.3.21

Dez a um

O interfone toca. São 2h43 da manhã. Mais uma madrugada que me reviro nos lençóis com a invasão dos seus trejeitos forçando todas as funções do meu corpo no limite, me mantendo desperta.

O interfone toca, reincide, insistente.

Algum engraçadinho, trote, uma desculpa. Eu não ia atender nem fodendo. Me reviro nos lençóis, sigo a leitura de algum livro sobre arte contemporânea, como se minha cabeça estivesse de fato em happenings e instalações - eu detesto arte contemporânea.

Mas a campainha me faz saltar da cama. Interfone, ok. Mas campainha? A essa hora?

Penso em ignorar, mas o "Valentina" grave me suga em um segundo até a porta, a mão automática na chave. A tessitura, o timbre e a cadência particulares. O sotaque que na tua boca se torna só teu.

Falo seu nome, é uma pergunta, não pode ser. Você mora do outro lado da cidade, e, caralho, é madrugada. Mas o teu "Ufa, caralho" me confirma.

Eu tinha me esquecido do seu poder de persuasão frente a uma equipe inteira de porteiros que, mesmo com o pouco tempo, já decorou seu nome e rosto.

Pulo no seu colo, a urgência sôfrega dos desejos que se tornam necessidade. Sua boca na minha é mais do que encontro. Te sorvo. Absorvo você dentro de mim. Sedimentando as treliças que a saudade deixa.

Centelha... do caos

Sentir. Muito sentir. E, a isso, equiparada a ciência do quanto não se pode. Por que é tão bom pular no abismo, se a queda certeira e todas as sequelas são tão sabidas?

A gente se ilude de que doem os quase amores - com seu bônus reforçador das brechas do que não foi e dos espaços sedutores da fantasia -, mas como seriam estes piores do que os refreados pela própria consciência?

Nós dois e a certeza há muito internalizada, por teoria - por profissão, inclusive, no teu caso - e por vivência, da ativação do abismo.

E darmos as mãos conforta, arranca o peso do peito que até então nós, anestesiados, não nos dávamos conta de que existia. Mas dilacera o dobro do que as soltarmos.