Divisa. Cindida por escolha. Nunca conseguiu ser diagnosticada, nem para isso ela serviu. Era consciente demais para ser capaz de qualquer coisa, e ser feliz e bem recebido no mundo demanda certa dose de ignorância. Mesmo como pária. Até com essa linha ela já nascera cruzada.
Era insuportável ver o mundo por qualquer lente outra que não a da diplopia. Tamanha conversão tornara sua visão física também assim. Estrábica.
Precisava fantasiar.
Precisava em sua mente trajar os caixas de supermercados de Oompa Loompas e, assim, como aprendeu a criar, aprendeu, do mesmo jeito, a se deleitar com o cotidiano. Com as cenas com que travestia a realidade.
Às vezes se permitia ser envolvida pelo afeto dessas criações. Um afeto que para ela nunca existiu fora de seus devaneios. De nada. De ninguém. De lugar nenhum. De nada adiantavam suas incessantes andanças pelo mundo, nenhum lugar para ela estava lá. Eram todos bolhas de sabão. Por mais que fossem bonitos de admirar por alguns momentos, eram frágeis, fugazes, irreais. Reflexos e refrações. Ilusões.
Às vezes se permitia sentir graça nas coisas. O ascensorista podia muito bem ser um apresentador de talk show disfarçado, e todas as pessoas sérias no elevador eram só máscaras de personagens de commedia dell'arte, que, inversamente, habitavam corpos. Um sonhado mundo dos contrários no qual, então, ela seria feliz. Com uma sina outra, em que as coisas não estivessem sempre fadadas a se despedaçarem. Mesmo antes de tomarem qualquer forma.
Deveria ter desconfiado. Na infância, nenhuma nuvem a ela se mostrava como materialidade que fosse. Eram todas borrões indecifráveis. Distantes. Castelos de areia nunca se firmaram. Os de cartas, menos. Se é que as cartas mantinham algum fio de sentido. De destino.
No mundo além das diplopias, finalmente ela se sentiria amada, em totalidade, e não pelos cacos de agrados alheios que sempre deixava no caminho. Sem ser arremessada de sensação ruim a sensação ruim, novidades do lodo existencial que em sua garganta só se avultava. Como se já não bastassem todas aquelas que lhe deram forma no inóspito ventre de que fora cuspida.
Ninguém nunca a quisera, de fato. Era o próprio elefante branco na sala. Incômodo, tolerância, indiferença. Nunca o desejo. Nunca o amor. Ninguém nunca a olhara nos olhos. Dentro dela. Na alma. Era a própria caixa de Pandora em latência eterna, sua defensiva soberba volta e meia gostava de assim visualizar seus universos.
Cansara-se de - não por orgulho, mas por não mais suportar - ser tratada como se sua presença fosse um favor no mundo. Como se a qualquer momento fosse ser vomitada. Das pessoas. Dos lugares. Das situações. Dela mesma. Como aquilo que é sempre mal tolerado e precisa ser expurgado no mesmo instante em que se apresenta. Repulsiva.
Encarregara-se, então, ela mesma de fazer isso.
Vagar era a única coisa que lhe dava paz. Correr, na verdade, até gritarem articulações de joelho e quadril. Sem se ancorar, era impossível ser plenamente ciente do quanto era indesejada, inadequada, inadequável, por mais que esse tipo de coisa seja pontiagudamente invasivo como cheiro.
A vida era um eterno recolher de cacos. Varria-se todos os dias pelas manhãs para debaixo do tapete para poder suportar. Mas, no decorrer das horas, tão ingratas, era impossível conter as quantidades exorbitantes de si mesma, algo sempre se deixava revelar, desfazendo os corrimões em que a duras penas se escorava frente aos outros. A exaustão dos eternos retornos.
Certa feita lhe perguntaram como podia não temer fantasmas e coisas do tipo, encarar de peito aberto toda sorte de assombrações, a ponto de dissuadi-las de seus malfeitos. Ela bem sabia, muito mais do que qualquer outra pessoa no mundo um dia soube, que os piores fantasmas são os que nós mesmos carregamos. E nenhum filme bem produzido de Hollywood chegou nem perto de conhecer o real terror de tudo o que havia dentro dela. Com que convivia. Hora após hora. Minuto após minuto. Cada segundo mais arrastado do que se pode tolerar.
Não há o que temer, porque essa sempre lhe foi toda a realidade possível. Você para de temer as perdas quando se dá conta de que nunca houve ganhos. Nunca haveria. Nunca haverá.
O solo nunca volta para o lugar depois que você percebe que todo Olá é, antes, Adeus.
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