22.2.22

Volições de Colombina

Era ela quem trazia o mar na boca 
de vontades confessas, mas ocultas
encantos em contos que não assina 
pois ter único papel é raso e pouco 
quando se é meio Pierrete
e também meio Arlequina 

20.2.22

Domingo

Eu duvidei até o último momento, mesmo com os vídeos que me mandou no meio do caminho e com a localização em tempo real a 12km de altitude.

Depois de tantos meses, e, pela primeira vez, um ano inteiro sem nenhuma reincidência, Elizabeth tinha se tornado uma miragem.

Minhas mãos suavam no volante quando cheguei a Congonhas.

Elizabeth tinha passado uma temporada fazendo não sei o quê em não sei onde e agora voltava, mas o cheiro de casa quem sentia era eu.

19.2.22

Sábado

Desde quando conheci Elizabeth, eu já sabia que o fim se prenunciava. Havia pessoas, havia rotinas, mas principalmente havia uma propensão bilateral à esquiva.

Ir embora era questão de tempo.

Eu só não esperava que sequer fosse ter tempo de lidar com o fato antes de consumado. E foi assim que tive que assimilar a partida dela. Sozinho. Em um quarto de hotel.

Era sábado, e talvez o caminhar literal pelas ruas lotadas do bater ponto da felicidade me tirasse daquele remoer em círculos.

Beijos escandalosos, sorrisos bêbados e olhares vidrados. Gargalos necessários do cotidiano. O brinde à analgesia da vida real. Não sua celebração, pelo contrário, sua total recusa.

Procuro um lugar, qualquer lugar, que me tire dela, de mim. No qual também eu consiga uma dose eficaz de fantasia.

18.2.22

Sexta-feira

Sexta-feira, e eu ficando no escritório mais do que deveria não é novidade. A minha sala é o único ponto de luz na escuridão das pessoas que já correram para seus finais de semana.

No mar do breu, alguém bate à minha porta.

Elizabeth. Elizabeth?!

Trazia um fardo de Dunkel, uma referência a todos aqueles nossos momentos regados à cerveja preferida dela.

Vinha diferente. O humor como uma roupa que escolhia de forma leviana do armário. Eu, um mero espectador de seus artifícios.

17.2.22

Quinta-feira

Acordo antes do despertador, o senso de responsabilidade me chama. Só lembro que é feriado depois do banho, as rugas recém-surgidas que me encaram diante do espelho me forçam goela abaixo reflexões bélicas.

Me pergunto, eu, mais um de tantos, o quanto compactuo com a ânsia pelo tal propósito. E rio sozinho vendo o quanto, na tentativa vã de individualidade, sou só mais uma esponja da massa. Desejos iguais e olheiras mais fundas.

A realização é dada, não fossem as costas que viramos para ela, e ainda é preciso sorver o lirismo do cotidiano - todo o lirismo possível, aliás.

E, hoje, para mim era fácil. O Vivaldi que algum vizinho resolveu colocar em vez do sertacorno costumeiro. O pássaro que cruza as nuvens na vista indevassável do apartamento de andar alto. Virar a omelete inteira. O cheiro do café forte preenchendo a casa.

16.2.22

Quarta-feira

Eu nunca imaginei uma versão dos fatos de nós dois em que Elizabeth se despiria para mim. Displicentemente, como quem entra no chuveiro de casa.

Que tirasse as piadas, os vieses, os tangenciamentos e apenas se mostrasse, ali, em sua natureza.

Mas eis que houve um dia, um dia muito particular. Era quarta-feira, dia em que a urgência da semana se estabiliza, e os afazeres se encaminham quase que sozinhos.

Quarta é um dia traiçoeiro, a amostra de calmaria nos coloca em contato com nós mesmos, e não é sempre que estamos disponíveis para esse tipo de escrutínio.

15.2.22

Terça-feira

Elizabeth e eu nunca trocamos contato.

Pode ser estranho pensar em como a gente se achou depois em uma cidade grande, morando cada um de lado, nada em comum na rotina.

Mas, como a própria diz, se não fosse estranho não seríamos nós, então todas as estranhezas eram nossa única realidade possível.

Fui jogar boliche com um cliente, sorriso social e técnica nenhuma, eu detestava. 

Na saída, puto pelo contrato não fechado e o cheiro de cigarro na roupa em vão, a amassada na lateral do meu carro que algum descompensado deu, ela.

Elizabeth, o patchwork de conflitos que passou a apaziguar minhas guerras e que facilmente realinharia os chakras do mundo.

14.2.22

Segunda-feira

Era segunda-feira, com toda a urgência de começo de semana. Um corretor de imóveis insistente no telefone, um ambulante que tenta me vender a novidade do século, um assovio do outro lado da rua.

Afazeres se empurrando como se minha mente fosse um metrô lotado.

Ignoro os ruídos divergentes para não enlouquecer, só por agora, tentando conquistar pelo menos dez minutos de sanidade.

O café ao virar da esquina, luzes baixas e decoração cafona, parece conseguir abrigar meu escoamento mental desses excessos.

Então a vejo.

2.2.22

Still loving you?

A banda tocava uma versão um tanto revoltada da balada romântica famosa, provável inspiração na releitura de Sonata Arctica. E esse tom falava muito mais com ela hoje do que a original. 

É claro que ela não "estaria lá", nunca fora dada a isso, não seria agora que o cenário seria diferente. Mas nem por isso deixava de haver uma peculiaridade ali.

Contra todas as probabilidades, ela sentia. Houve mais de um desses momentos de constatação, um tom um tanto adolescente com que falara consigo mesma: "É, eu gosto dele".

Mas era uma sujeirinha, e, naquele mar de aberrações que era sua vida, isso nunca seria nada. Só mais um ponto. Um pequeno ponto em meio a tantas coisas, tão maiores e mais invasivas, que logo se tornaria mais uma das suas tantas indiferenças.

Então como uma profecia autorrealizável, o único bar do tema na cidade pequena, em um manifesto sábado à noite pós-semana de feriado, foi brindada com mais do óbvio. A imagem dele surgindo na sua frente.