14.4.22

Insígnia de Ar

Lembro bem, claro que lembro. Foi esta a primeira imagem que tive de você: você ignorando a partitura que te entreguei, transpondo de ouvido na hora a música pro tom em que eu estava de fato cantando.

Meses depois, você fazendo arranjo no piano a partir de qualquer som, começando a tocar junto com uma música, qualquer música, que você nunca tinha ouvido antes, sugado da realidade, ali imerso.

Ouvido absoluto e problemas varridos pra baixo do tapete no excesso de trabalho.

Sim, eu lembro bem.

Você dizendo o quanto é difícil ser geminiano com lua em Virgem, louco e metódico, bicho solto e cheio de paranoias. E foi ali, nas tuas gesticulações exageradas, que eu soube que tava fodida. Que o encantamento, a admiração, a graça além da conta que eu achava nas tuas piadas, gostar demais de estudar história da bossa-nova e fórmula de compasso às 8h eram só os efeitos colaterais de você.

E eu me perguntava como é que pode caber tanto, de Chopin a Gloria Groove, tantos mundos, o flerte com tantas nuances, nesse tico de 1,64m.

Faz sentido você precisar transbordar. Dar as suas cenas, de falas espalhafatosas e soberba agressiva. Expandir-se em prolixidades e extroversão, rebarbas dos seus castelos malcontidos.

Tuas dualidades complementares em comunhão, na necessidade, tal qual o ar, de estar em todo canto, ainda que em cada parte de forma diferente. Tirando coisas do lugar, mas deixando outras quietas, imperceptível - mas sempre necessária - presença por escolha.

Muito se fala da volatilidade dos signos de ar, tal qual o ar, a gente passa, só o movimento nos pertence. Mas fazem parte do ar também os danos. O ar bagunça, o ar transforma, o ar é vital. Mas nada mostra mais seus devastadores efeitos do que a sua ausência.

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