10.3.23

F33

Eram 19h17 e imóvel eu já estava. Aquilo me consumia cada vez mais cedo. Me preocupei, é claro, mas não o suficiente pra fazer nada de diferente. Não o suficiente pra conseguir levantar, mesmo por uma necessidade fisiológica improrrogável. 

Nada é mais improrrogável do que o dissabor. Lama amorfa da apatia. Não havia nada que me movesse.

Os livros agora eram todos palavras desconexas, figuras vazias, fugas incapazes de me dar qualquer tipo de gozo. Eram inúteis também os esportes, tábua de salvação que qualquer psiquiatra tira da manga, cartada máxima da terapia. Nem a endorfina das mais de quatro horas correndo pelo bairro - como quem corre de si - me dava efeito. Era como jogar um pacotinho de soda cáustica num bueiro de toda uma cidade: pequeno demais pra fazer efeito.

Se não funcionava mais ir pelo lado da saúde, livros, bons hábitos, meditação, que fosse pelo da doença, então. Médicos negligenciados, falta em exames marcação após marcação, sempre por fazer, frasco de vitamina apodrecendo no armário. Drogas? Só se eu fosse me enveredar por algo mais forte, mas nem nisso acredito mais. Prazeres vazios e fugazes do tipo entorpecentes, menos ainda funcionavam. Eu já conhecia todas as rebarbas que lhes acompanhavam. Não valiam a meia hora no vaso aqueles quinze minutos fingindo felicidade do álcool. Não valiam os dois dias de faringite os trinta segundos de alívio da nicotina. Não valia o dia inteiro de enjoo a quase uma hora de escape e ilusão do cannabis. Não valiam, tampouco, as semanas de lodo aquela meia hora de ilusão de amor, a droga mais perigosa.

Como eu odeio precisar do amor.

- mas isso é tópico a ser abordado em terapia, faço uma nota mental pra mim mesmo; é patologia, a qual há umas décadas já conheço muito bem.

Então começo a discorrer sobre todos os processos psíquicos que levam alguém a amar. Não existe paixão assim constituída com base na saúde. É sempre a nossa escuridão que nos conduz pela mão (a bruxa de João e Maria) por essa floresta. É tudo feito de doce, parece. Mas todo veneno é, antes de atingir o palato e mostrar seu retrogosto, também adocicado. O que é amargo demais não pode ser assim concebido, então se mostra pelo seu oposto. Como tudo na vida.

Atração é o inconsciente identificando trauma, química é simbiose. Eu disse a mim mesmo no primeiro lampejo de interesse. Mas também dei o sorriso destemido, minha pretensão de ego na infância tão mal constituído. Eu aguento. Eu sempre aguentei qualquer coisa. Que tipo de ressaca pode ser grande demais? Que tipo de rebote seria o preço pago para sentir?

Inconsequência de quem acredita demais nos próprios poderes? Imediatismo de quem busca, em desespero, sentir? - uma coisa, qualquer coisa, diferente da inércia, intrínseca companheira de mais de trinta anos - Impulso agarrando-se a um momento de evasão e entorpecimento? Inocência de quem se esforça pra acreditar que pode ser diferente? Desejo, desejo, claro, de que assim o seja?

Hoje já caiu no senso comum a ideia de que procuramos nas relações ausências da infância, o que não é bem assim. Mas, se assim exatamente o fosse, qual é o preço para quem procura ser amado, então?

Fecho as janelas. A brecha nunca me fez respirar. A brecha só me suga cada vez mais pra esse abismo.

Então durmo e acordo, durmo e acordo, incontáveis vezes, até o corpo vencer a mente e eu não conseguir mais me desligar de mim. Até o sono me abandonou hoje, a fuga até então mais bem adaptativa das que encontrei, as únicas rebarbas dessa eram culpa e dor de cabeça, irrelevantes perto de todo o resto. Se nem o bom nem o ruim me dão mais efeito, nem a destruição interna nem a externa, o que me resta?



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F33 é o diagnóstico universal, presente no CID-10, de depressão. Esse não é um texto sobre relacionamentos, é um texto sobre saúde mental. Se você se identifica, procure ajuda.

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